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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Fracasso irredutível

Hélio Schwartsman


Já que Delfim Netto levantou o problema das previsões erradas dos economistas, acho que podemos tratar deste segredinho sujo que afeta em maior ou menor grau todas as ciências sociais.

Quem demonstrou cabalmente a precariedade dos prognósticos de economistas e cientistas políticos foi Philip Tetlock. Ele coletou, ao longo de 20 anos, 28 mil previsões feitas por 284 experts. A conclusão do estudo, publicado em 2005, é que eles se saíram ligeiramente melhores que o acaso. Um macaco lançando uma moeda obteria resultados parecidos.

Como é possível que tanta gente inteligente e estudiosa, que dedicou a vida a um ramo do saber, não consiga superar o macaco? A explicação é de ordem física. Nós nos habituamos a ver a ciência prevendo com enorme precisão fenômenos como eclipses e marés. Só que estes são sistemas não complexos. Aqui, para efeitos práticos, o todo não difere da soma das partes, o que permite montar equações relativamente simples que resultam em predições acuradas. Embora um bom número de fenômenos naturais siga esse padrão, há muitos que não o fazem.

Em sistemas complexos, que incluem quase todas as atividades humanas, o todo é mais que a soma das partes. É como um avião: nenhuma das peças que o compõem é capaz de voar, mas o conjunto, sim.

Prognósticos sobre sistemas complexos, quando possíveis, ficam à mercê de pequenas perturbações que podem alterar de forma dramática os resultados, em especial se o prazo é dilatado. É o efeito borboleta.

Isso significa que devemos desistir dos modelos econométricos? Calma lá. Apesar de suas limitações, eles nos ajudam a entender melhor os fenômenos e, ao menos em teoria, podem ser aperfeiçoados. O que podemos fazer é tentar recalibrar nossas mentes, para interpretar os vaticínios menos como um oráculo e mais como o resultado de um exercício intelectual irredutivelmente falho.


helio@uol.com.br
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/12/2011.

De Oxford para a USP

Claudia Antunes

Um ótimo contraponto aos que comemoram a punição exemplar aplicada aos invasores da USP e defendem o enquadramento dos rebeldes sem causa do campus é o artigo "Universidades sob ataque", do historiador britânico Keith Thomas, recém-publicado na "London Review of Books".

O texto vem a calhar porque, por condenáveis que tenham sido os métodos usados na ocupação da Coordenadoria de Assistência Social da USP, no ano passado, o episódio virou desculpa para ataques generalizados à liberdade e à autonomia acadêmicas. Os cursos não técnicos, em especial, são caricaturados como redutos de radicais e preguiçosos.

Esse conservadorismo não é original. Thomas, professor e ex-dirigente de Oxford, descreve ofensiva semelhante em seu país, onde um programa oficial tenta alinhar as universidades às necessidades imediatas do mercado e trata alunos como consumidores de saber empacotado.

É bom registrar que o historiador não é contrário à ciência aplicada nem a que se exija mérito de professores e estudantes. Mas a ênfase na aferição quantitativa, aponta, tem resultado em calhamaços de trabalhos desnecessários ou concluídos de forma prematura.

Lá como cá, um argumento recorrente é que a universidade pública deve mostrar resultados rápidos para prestar contas aos contribuintes que a sustentam. Despreza-se, diz Thomas, a ideia de que o ensino superior tem um "valor não monetário", dando espaço ao "pensamento especulativo" essencial à democracia -e que, afinal, fez o prestígio histórico da academia britânica.

Não se contesta que a universidade brasileira, como outras instituições nacionais, precisa ser aprimorada. Ruim é a inspiração em modelos de reforma como a do Reino Unido atual, com sua juventude desencantada e sua economia quase reduzida às instituições financeiras da City.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/12/2011.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Ideias que moveram seu tempo


Guilhermo O'Donnell


Luiz Carlos Bresser-Pereira

Guillermo O"Donnell poderia ter sido um grande político, mas preferiu se dedicar às ideias, por crer que elas são poderosas e movem o mundo

Acabo de receber a notícia da morte de Guillermo O"Donnell aos 75 anos. Perco um amigo da minha geração, e todos perdemos o mais importante pesquisador e teórico da democracia da América Latina.

Conheço Guillermo desde os anos 1970, quando lutávamos pela democracia nos nossos países. Mas o primeiro grande trabalho seu que li foi sobre as alianças de classe na Argentina: o pacto desenvolvimentista associando empresários industriais, burocracia pública e trabalhadores contra o pacto liberal unindo a grande agricultura e pecuária exportadora ("el campo"), o grande capital e interesses estrangeiros.

Fazia, então, a análise e a crítica desse pacto colonialista que Getulio Vargas venceu no Brasil, mas que os argentinos jamais lograram derrotar. Ainda nos anos 1970, como pesquisador do Cedes, Guillermo desenvolveu a ideia do "Estado burocrático-autoritário" - um conceito que se tornou paradigmático na América Latina.

Ele explicou a lógica dos regimes militares como uma consequência do "aprofundamento do capital" que estava ocorrendo na região depois que a substituição de importações de bens manufaturados de consumo se esgotara e se tornava necessário investir em grandes empresas capital-intensivas.

No início dos anos 1980, Guillermo deixou de lado o tema do autoritarismo e se voltou para as transições democráticas.

Liderou um grande projeto de pesquisa sobre essas transições, mas, em vez de explicar as transições como consequência da luta popular e da adesão da burguesia industrial a essa luta quando perdeu o medo do comunismo, defendeu a ideia de que a transição democrática decorreu da vitória dos militares "soft liners" sobre os "linha dura".

Depois da redemocratização da Argentina, do Brasil e do Chile, voltou-se para o problema da qualidade da democracia. Não bastava uma democracia mínima, a liberdade de palavra e de associação e o sufrágio universal; era preciso que o Estado democrático se tornasse cada vez mais democrático, que deixasse de ser apenas uma "democracia delegativa" nas quais todo o poder se concentra no chefe do governo.

Para isso, não bastava que se avançasse na defesa dos direitos sociais e se aumentasse a responsabilização dos políticos; era necessário também avançar na proteção dos direitos civis -do direito à vida, à liberdade, à propriedade e ao respeito- que são assegurados aos ricos, não aos pobres.

Guillermo O"Donnell foi um grande intelectual do seu tempo. Um tempo que ele viveu com paixão e indignação. Durante um certo período de sua vida viveu em São Paulo e foi pesquisador do Cebrap; assim, quase se tornou um brasileiro, mas a Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, nos venceu. Entretanto, antes de mais nada ele era um argentino, e voltou para Buenos Aires há alguns anos.

Em seu país ele poderia ter sido um grande político -não lhe faltaram convites e oportunidades na sua juventude e maturidade- mas preferiu se dedicar às ideias, porque acreditava que elas são poderosas e que movem o mundo. As suas certamente moveram.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/12/2011.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 76, professor emérito da FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Pensar a USP

Vladimir Safatle


As reações ao que ocorreu na USP demonstram como, muitas vezes, é difícil ter uma discussão honesta e sem ressentimentos a respeito do destino de nossa maior universidade. Se quisermos pensar o que está acontecendo, teremos que abandonar certas explicações simplesmente falsas.

Primeiro, que o epicentro da revolta dos estudantes seja a FFLCH, isto não se explica pelo fato de a referida faculdade estar pretensamente "em decadência". Os que escreveram isso são os mesmos que gostam de avaliar universidades por rankings internacionais.

Mas, vejam que engraçado, segundo a QS World University Ranking, os Departamentos de Filosofia e de Sociologia da USP estão entre os cem melhores do mundo, isso enquanto a própria universidade ocupa o 169º lugar. Ou seja, se a USP fosse como dois dos principais departamentos da FFLCH, ela seria muito mais bem avaliada.

Segundo, não foram alunos "ricos, mimados e sem limites" que provocaram os atos. Entre as faculdades da USP, a FFLCH tem o maior percentual de alunos vindos de escola pública e de classes desfavorecidas. Isso explica muita coisa.

Para alunos que vieram de Higienópolis, a PM pode até significar segurança, mas aqueles que vieram da base da pirâmide social têm uma visão menos edulcorada.

Eles conhecem bem a violência policial de uma instituição corroída por milícias e moralmente deteriorada por ser a única polícia na América Latina que tortura mais do que na época da ditadura militar.

Não há nada estranho no fato de eles rirem daqueles que gritam que a PM é o esteio do Estado de Direito. Não é isso o que eles percebem nos bairros periféricos de onde vieram.

Terceiro, a revolta dos estudantes nada tem a ver com o desejo de fumar maconha livremente no campus. A descriminalização da maconha nunca foi uma pauta do movimento estudantil.

Infelizmente, o incidente envolvendo três estudantes com um cigarro de maconha foi a faísca que expôs um profundo sentimento de não serem ouvidos pela reitoria em questões fundamentais. Era o que estava realmente em jogo. Até porque, sejamos claros, mesmo se a maconha fosse descriminalizada, ela não deveria ser tolerada em ambientes universitários, assim como não se tolera a venda de bebidas alcoólicas em vários campi.

Quando ocorreu a morte de um aluno da FEA, vários grupos de estudantes insistiram que a vinda da PM seria uma máscara para encobrir problemas sérios na segurança do campus, como a iluminação deficiente, a parca quantidade de ônibus noturnos, a concentração das moradias estudantis em só uma área e a falta de investimentos na guarda universitária. Isso talvez explique porque 57% dos alunos dizem que a presença da PM não modificou em nada a sensação de segurança.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/11/2011.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Assim não, pessoal

Antonio Prata

Em 1998, na primeira semana do meu curso de ciências sociais, na PUC, fizemos um abaixo-assinado. Estávamos em fevereiro, a classe era abafada e pedimos para que a reitoria instalasse um ventilador. Redigimos um texto à mão, coisa de três linhas, e, durante o intervalo, uma colega foi até o Centro Acadêmico digitar e imprimir nossa justa e simples reivindicação. Mal chegou ao CA, um aluno ofereceu-se para ajudar.
Minha amiga voltou uma hora depois, com os olhos arregalados. As três linhas tinham virado um manifesto de duas páginas, que falava do "sucateamento" da educação no Brasil, dos salários dos professores nas escolas públicas, citava Maio de 68 e terminava exigindo: "a) a divisão da turma em dois; b) a mudança para uma classe maior; ou c) ventiladores".
Sem entrar no mérito do longo manifesto, perguntei que história era aquela de dividir a turma em dois -o que implicaria dobrar o número de professores e custaria mais de R$ 100 mil-, se nós só pedíamos um ventilador? Ela disse que tentara explicar tal raciocínio ao membro do CA, mas ouviu em resposta que era "preciso dar uma alternativa à reitoria, para começarem a discutir". Alguém sugeriu, então, que pedíssemos: a) um ventilador ou b) um frigobar com Boêmias e Chicabons. Se a reitoria preferisse a segunda opção, não nos oporíamos.
A história seria cômica, não fosse por um detalhe: a educação pública no Brasil era -e é- uma lástima, os salários dos professores eram -e são- uma vergonha. Ao cobrar do reitor de uma universidade privada melhorias no ensino público, contudo -e no abaixo-assinado por um ventilador-, o guerrilheiro do CA não fazia nada pela educação no país, só tornava ridículo, aos olhos dos demais alunos, todos os que levantassem as bandeiras legítimas de um ensino de qualidade -além, é claro, de afastar definitivamente a possibilidade de conseguirmos o ventilador.
A invasão da reitoria da USP me fez lembrar daquele episódio. Que a polícia prenda jovens por consumo de maconha é lamentável. Que jogue gás lacrimogêneo contra os estudantes que protestam contra a prisão é uma violência desmedida. Mas que, em reação a isso, alunos invadam o prédio da reitoria e peçam a proibição da PM no campus é um raciocínio tão equivocado quanto sugerir a divisão da turma em dois, por causa do calor. Ou luta-se para que ninguém seja preso por porte de maconha e que ninguém tome porrada da PM -e acampa-se em frente do Palácio dos Bandeirantes, não na reitoria- ou o que se está exigindo é um privilégio. Sugerir que a PM possa entrar em todos os lugares, menos no campus da universidade, não é um pensamento libertário, é um vício classista: a velha ideia de que, neste país, todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
Com esta invasão, os guerrilheiros da reitoria não fizeram mal apenas à discussão sobre drogas e violência policial: ajudaram a tornar ridículos, aos olhos de toda a população, os milhares de outros jovens que, no Brasil e fora dele, lutaram e lutam por causas urgentes e fundamentais; não para serem tratados como cafés com leite.

antonioprata.folha@uol.com.br

@antonioprata
Blog 'Crônicas e Outras Milongas' antonioprata.folha.blog.uol.com.br
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/11/2011

terça-feira, 24 de maio de 2011

Polícia e autonomia na USP

Fernando de Barros e Silva

"Não é um caso como esse que vai nos dar um argumento bom para colocar a PM dentro da USP." Ouço a frase um pouco estupefato. Quem fala à videorreportagem da Folha.com é uma respeitável professora da Faculdade de Economia e Administração da USP. Ela se refere ao assassinato do estudante Felipe Ramos de Paiva, quarta à noite, no estacionamento da FEA, morto com um tiro na cabeça.
Não é mesmo o caso de espetacularizar a tragédia. Nem de minimizá-la. O que mais seria necessário para escancarar que a USP se tornou um lugar inseguro? Ou antes: existe algum bom argumento para que a PM não esteja dentro da USP? Não consigo pensar em nenhum.
Até quando a universidade ficará refém da mentalidade que herdou do regime militar, quando, de fato, a polícia entrava no campus para reprimir e prender arbitrariamente estudantes e professores?
Passaram-se 40 anos. Quem, de fato, acredita que a presença da PM possa significar ameaça à liberdade de manifestação na USP? Ela vai, isso sim, como parece óbvio, aumentar a proteção das pessoas que lá estudam e trabalham, ainda que não seja a única medida a ser tomada, como também vem sendo debatido.
Estamos falando de uma área correspondente a 440 campos de futebol, com vários espaços ermos e muitos pontos de acesso, por onde circulam diariamente até 100 mil pessoas, sendo 80 mil entre docentes, funcionários e alunos.
Ninguém aqui defende a "militarização" do campus. Isso é tolice. O problema talvez seja o inverso. A ideia de que a USP seja um "território livre", uma comunidade imune às regras do mundo externo, é uma distorção abusiva da autonomia universitária conquistada nos anos 80, reforçada ainda pela visão idílica e idealizada do campus, resquício de um pensamento de esquerda afinal muito pouco republicano.
Dizer, hoje, "aqui a polícia não entra" não passa de um cacoete autoritário de quem, já sendo autônomo, gostaria de ser soberano.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/05/2011.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Para que os rankings?

Rogério Meneghini

Os rankings de universidades causam surpresas pela diversidade de resultados. Recentemente destacou-se essa matéria na imprensa.
Como dar-lhes crédito quando, por exemplo, a USP salta da 19ª posição no ranking Scimago para a 471ª no Leiden, entre os dez rankings existentes? As discrepâncias não ocorrem porque a cienciometria "não é uma ciência exata", mas porque os critérios utilizados pelos rankings são diversificados.
A primeira razão disso é que eles têm caráter mercadológico e consideram a diversidade de interesses dos consulentes. Daí as distinções de enfoque. As melhores universidades estão em busca de talentos jovens, não só por mais dinheiro das anuidades, mas também por mais sucesso em ciência e destaque de seus egressos na sociedade.
A autopromoção é um caminho (a Universidade Harvard tem um escritório em São Paulo), mas uma avaliação externa e comparativa tem maior alcance promocional.
Decorrem daí ênfases distintas em diferentes atividades acadêmicas avaliadas pelos diferentes rankings. Pessoas e instituições vão buscar os rankings que lhes proporcionem informes de interesse, cada um individualmente avaliado.
A diversidade dos resultados dos rankings causa má impressão nos incautos. Entre as várias críticas, uma é a da utilização de cienciometria na consideração de citações como sinônimo de qualidade e de relevância dos artigos.
Porém, em muitas pesquisas realizadas, a correlação entre percepção pessoal dos pares e citações é significativamente alta. Outra crítica diz respeito à ausência de avaliação de publicação de livros.
A esse respeito, é importante considerar que as grandes bases de dados estão passando a cobrir livros, um documento de comunicação de interesse forte nas áreas de humanas e sociologia. Para aqueles visceralmente contra o uso de cienciometria, o Times Higher Education publicou recentemente um ranking de universidades baseado apenas na opinião subjetiva de cerca de 13 mil pares.
As universidades brasileiras novamente se viram mal. Certamente um fator que muito pesa é o baixo grau de cosmopolitismo destas, seja na participação de estrangeiros nos corpos docentes e discentes, seja no grau de colaboração científica internacional em projetos (40º lugar entre as nações).
Certamente, as universidades não devem ficar à mercê dos rankings em suas decisões de políticas acadêmicas. Elas têm que proceder com as suas próprias avaliações, buscando participação de pares estrangeiros, como fez a USP na avaliação de departamentos a partir de 1992. As instituições governamentais podem aí também desempenhar um papel importante, quando fomentam em nível institucional (Capes, por exemplo).
Mas ser contra os rankings é estéril e enviesado. Eles existirão, provavelmente proliferarão e serão aperfeiçoados na medida em que as universidades busquem arregimentar os melhores professores, pesquisadores, alunos e parcerias.
As universidades brasileiras estão ainda despreparadas para serem proativas nesse contexto.


ROGÉRIO MENEGHINI, professor titular aposentado do Instituto de Química da USP, é coordenador científico do programa SciELO de revistas científicas brasileiras e membro da Academia Brasileira de Ciências.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/05/2011.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Teses sobre a falta de classe

Vinicius Torres Freire

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso provocou um surto de sociologia no mundo político e midiático do Brasil. O pessoal passou a falar de classe social com a sem-cerimônia e a falta de classe que apenas a nossa ignorância desavergonhada permite.
O ataque foi desencadeado quanto esta Folha revelou nesta semana parte do teor de um artigo do presidente-sociólogo sobre mudanças sociais e a ruína programática e política de seu partido, o PSDB.
A julgar pelos comentários sobre o texto de FHC, os ataques de sociologia causam tanta dificuldade de enxergar como os piores casos do surto de conjuntivite, na moda em São Paulo. Senão, vejamos (sem intenção de trocadilho).
Primeiro, as definições de classe que andam por aí como miasmas do pensamento social não prestam para pensar questão social alguma.
Diz-se que existe uma "nova classe média", que brotou ou inflou nos anos Lula. Essa ideia de classe média ora disseminada pelo noticiário de assuntos econômicos é uma classificação estatística, apenas.
Num caso, conta o número de bens duráveis de uma família, mistura talvez com o número de banheiros e os anos de escola do chefe da família e chega a um indicador.
Noutro, apenas diz que famílias com renda entre o mínimo tal e máximo qual são de classe média (porque estão no meio de uma distribuição). Por exemplo, famílias com renda entre R$ 1.500 e R$ 5.000.
Por falar nisso, uma família com renda de R$ 1.500 não é "povão", para usar as categorias brilhantes do debate do PSDB?
A primeira classificação serve a publicitários e a empresas, que podem assim imaginar alvos de campanhas de vendas. A segunda, nem a isso -talvez sirva com indicador agregado do tamanho do mercado nacional. Não muito mais. Na verdade, trata-se de uma espécie de indicador de evolução de renda, apresentado com outros números.
Tais indicadores não permitem por si só inferir coisa alguma a respeito de aspirações sociais, comportamento político, preconceitos, "valores" dessas famílias.
Para fazer uma crítica sarcástica, mas não muito, o fato de um cidadão ter comprado uma TV de plasma ou de ter passado a ganhar R$ 1.600 (e não mais R$ 1.200) não permite inferir se ele gosta das afirmações do deputado Jair Bolsonaro, se aprova a reforma tributária ou se vota no PSDB ou no PT.
O debate chegou a um nível muito ruim, a ponto de os envolvidos nessa conversa se permitirem, sem mais, utilizar uma categoria estatística banal e limitada para discutir mentalidades, opções políticas coletivas etc. Isso está abaixo do economicismo mais vulgar.
Perdeu-se a ideia de que situação no trabalho, relações e "capital" sociais, educação, pertencimento a redes várias, região de moradia etc. são determinantes, complexos, do comportamento, do eleitor ou de grupos sociais.
Segundo, qual o cabimento de um partido político pensar se vai desistir de buscar votos entre tais e quais pessoas, "tais e quais" sendo no caso grupos de 30% a 60% do eleitorado, a depender do gosto estatístico do freguês? Mais interessante é: como tal discussão apareceu e se mantém no ar por dias? Pois se trata obviamente de um despropósito conceitual e pragmático.

vinit@uol.com.br

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/04/2011.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Ranking para quê?

Vladimir Safatle

Um dos setores mais problemáticos das avaliações acadêmicas são os rankings mundiais de universidades. Mesmo com critérios que muitas vezes beiram o absurdo, eles influenciam decisões importantes ligadas à educação superior. Por isso, uma discussão sobre como tais rankings são feitos é mais que urgente.
Primeiro, o que impressiona quando os comparamos entre si são os disparates. Por exemplo, no ranking elaborado pela Universidade de Xangai, a Universidade de Paris 6 aparece em 39º lugar. Já naquele feito pela Times Higher Education, a mesma universidade está na 140ª posição.
A canadense McGill University ocupa a 61ª posição no ranking da Universidade de Xangai e a 35ª naquele da Times Higher Education. A USP aparece entre as 150 primeiras em um caso e sequer entre as 200 primeiras no outro. Esses são dois dos rankings mundialmente mais influentes.
Podemos dizer que o problema está na diversidade de critérios usados de um ranking a outro. Mas o problema é exatamente este: a ausência de um conjunto de critérios de fato representativo dos tipos de pesquisa e do real impacto da produção acadêmica.
Muitas vezes, os critérios são arbitrários e sem racionalidade alguma. Um claro exemplo diz respeito à avaliação da produção acadêmica. Em geral, tais rankings se propõem a avaliar a produção acadêmica a partir do total de artigos publicados em revistas indexadas ou a partir dos índices de citações a artigos e autores.
Note-se duas coisas impressionantes. Primeiro, tudo se passa como se não existissem livros. Se você é um pesquisador que produz um livro por ano, isso não será relevante para a avaliação da produtividade de sua universidade.
A razão é simplesmente o fato da área de ciências exatas ter sua produção baseada em artigos e papers. Mas isso não reflete a multiplicidade dos modos de produção acadêmica. Até segunda ordem, a cultura ocidental é uma cultura do livro, construída e influenciada a partir de livros, e não uma cultura do paper.
Por outro lado, os índices de citações expõem apenas a capacidade de circulação de um artigo, não sua qualidade. Não é difícil perceber que um artigo escrito em inglês sempre será mais citado que outro publicado em português, mesmo que o segundo seja melhor que o primeiro.
Mas, apesar disso, o fato de haver pesquisadores exóticos que ainda escrevem em português não indica que eles são inaptos a escrever em outra língua. Indica apenas que querem ter impacto em seu país, influenciar um público que fala sua própria língua.
É difícil entender por que critérios tão distorcidos sejam levados a sério. Está na hora de estabelecermos um verdadeiro diálogo entre áreas a fim de chegarmos a algo menos tendencioso e irreal.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 05/04/2011.

Entrevista com François Dubet


Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor

François Dubet

Fonte: http://sociologia.uahurtado.cl/carrera/imagenes/Dubet-F.jpg  Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor: entrevista com François Dubet FACED/UFRGS Colaboração de Delmar Poisl, em novembro de 2008 Publicado na Revista Brasileira de Educação, n 5, maio/ago 1977

Entrevista com François Dubet

Entrevista concedida a Angelina Teixeira Peralva e Marilia Pontes Sposito Universidade de São Paulo.
Tradução de Inês Rosa Bueno

Em entrevista concedida à Revista Brasileira de Educação em setembro de 1996, durante breve estada no Brasil, o sociólogo François Dubet reflete sobre a sua experiência de um ano como professor de história e geografia em um colégio da periferia de Bordeaux, França. Conhecido por suas pesquisas sobre a juventude marginalizada na França, François Dubet quis vivenciar, diretamente como professor, os dilemas da escola francesa contemporânea.

François Dubet é pesquisador do Centro d’Analyse et d’Intervention Sociologiques (CNRS – École des Hautes Études en Sciences Sociales), professor titular e chefe do departamento de sociologia da Universidade de Bordeaux II e membro senior do Institute Universitaire de France. É autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais: la galére: jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987; Les Iycées. Paris Seuil, 1991; Sociologie de l´experience. Paris: Seuil, 1994 (edição portuguesa; Lisboa, Intituto Piaget, 1997) e A l’école. ( com Danilo Martucelli ) Paris: Seuil, 1966.

Leia a entrevista completa em: http://noite.wordpress.com/2009/11/24/a-quando-o-sociologo-quer-saber-o-que-e-professor-entrevista-com-francois-dubet/ 

quinta-feira, 31 de março de 2011

Antropologia não é ciência?

Márcio Ferrari
A Associação Americana de Antropologia (AAA) recentemente fez uma pequena alteração na redação de um de seus documentos principais. Embora pouco extensa, a mudança provocou uma grande repercussão, porque “ciência” foi a principal palavra retirada. Para o público leigo, o assunto chegou na forma de uma reportagem do New York Times, no dia 9 de dezembro, intitulada: “Antropologia é ciência? Declaração aprofunda um conflito”. A “declaração” referida é o plano de intenções de longo prazo da associação. Antes ele dizia que o objetivo da entidade era “promover o avanço da antropologia como a ciência que estuda a humanidade em todos os seus aspectos”. Agora diz que “os propósitos da associação devem ser a promoção do avanço do entendimento público da humanidade em todos os seus aspectos”. Em mais dois pontos do texto a palavra “ciência” foi removida. Ela subsiste, no entanto, em outros documentos importantes da AAA, como sua declaração de princípios.

Leia o artigo na íntegra, publicado na Revista Pesquisa Fapesp: 
http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=4374&bd=1&pg=1&lg=

Fetiches conceituais

Rafael Cariello


RESUMO
O sociólogo Luís de Gusmão preconiza o retorno das humanidades a um ensaísmo menos eivado de jargões, conceitos e categorias classificatórias, em favor de uma escrita mais livre, que dialogue com o senso comum, que privilegie a compreensão e que não ambicione o estabelecimento de leis científicas a seu ver duvidosas.



O jaleco: quando convidado a falar sobre sua formação intelectual, o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso volta e meia chama a atenção para esse detalhe significativo da vestimenta de alguns de seus professores e colegas no curso de graduação. O que lhe serve de mote para ilustrar as desmedidas ambições das humanidades em meados do século passado.
"A obsessão era fazer ciência", relata FHC em "Retrato de Grupo" (Cosac Naify), livro comemorativo dos 40 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). "Para que se tenha uma ideia de nossa dedicação a essa postura, andávamos de avental branco -como se fôssemos cientistas."
A imagem voltou a aparecer no discurso que ele proferiu em homenagem a Gilberto Freyre na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2010. Era inevitável. Afinal, nos anos 50, o escritor pernambucano chegou a servir como contraexemplo para o método que os primeiros profissionais das ciências humanas no país, mestres do sociólogo tucano, pretendiam empregar.
Contra o que viam como vago "ensaísmo" bacharelesco das gerações anteriores, Florestan Fernandes e seus pares propunham um conhecimento social mais rigoroso em termos teóricos e metodológicos.
Cumpria recolher material empírico e compreendê-lo a partir de grandes sistemas conceituais, capazes de orientar a formulação correta das perguntas e das explicações daí decorrentes .
Marx, Durkheim e Weber ajudariam os cientistas sociais a reconhecer as "leis" de funcionamento das sociedades e da história -e delas derivar as conseqüências para um caso particular, como, digamos, o Brasil dos séculos 19 e 20.

AMBIÇÃO Há muitas pedras no caminho dessa ambição intelectual, como todos os seus praticantes puderam constatar desde então. Diferentemente das ciências naturais, que lhes servem de inspiração, as humanidades não dispõem de teorias únicas para os mesmos conjuntos de fenômenos, nem de métodos comuns a todos os seus praticantes. Ao contrário, distintos sistemas conceituais disputam a correta explicação de qualquer fato social, como bem sabem marxistas, weberianos, funcionalistas, estruturalistas etc.
Entretanto, ansiosas por validar seu status científico, todas as "escolas" sociológicas compartilham um desprezo por explicações sobre a psicologia humana ou fenômenos políticos e sociais particulares que não invoquem sistemas conceituais "científicos".
Assim, o conhecimento proporcionado pela análise de um historiador marxista seria mais amplo, teria maior valor, do que aquele oferecido por uma biografia desprovida de jargões técnicos ou sociológicos. A análise de um cientista político seria mais fecunda do que um comentário sobre o mesmo fato, ainda que extremamente arguto e inteligente, feito por algum marqueteiro ou por um mero jornalista.
Isso era verdade na década de 50, quando Florestan Fernandes orientava o jovem FHC em suas pesquisas sobre a escravidão, e ainda é verdade hoje. Desde então, os trajes em sala de aula mudaram. Mas um jaleco retórico e ideológico continua a caracterizar sociólogos, antropólogos e cientistas políticos, para prejuízo das disciplinas que praticam. É o que defende Luís de Gusmão, 54, doutor pela USP e professor do departamento de sociologia da UnB.
Em "O Fetichismo do Conceito", que deverá ser publicado pela TopBooks, depois de ter recebido indicação editorial do historiador Evaldo Cabral de Mello, Gusmão afirma que o uso de quadros conceituais não torna nenhuma análise sobre fenômenos sociais e políticos necessariamente mais fecunda.
Ao contrário. A busca por rigor "científico" nas humanidades, a tentativa de ultrapassar simples e inteligentes generalizações de senso comum sobre a sociedade, teria se revelado, na maioria das vezes, prejudicial à realização de explicações convincentes e esclarecedoras sobre fatos históricos, conflitos políticos, mudanças sociais.
Faltam a esses sistemas conceituais, nos diz o autor, leis sociológicas genuínas, distintas e irredutíveis às melhores generalizações do conhecimento de senso comum. As humanidades não foram capazes, afirma Gusmão, de descobrir leis e regularidades similares às alcançadas pelas ciências "duras".

PROBLEMAS Ao analisar determinado fenômeno, é comum que o esquema conceitual do pesquisador o leve a tomar seu "sistema" como mais real do que os fatos a serem explicados, distorcendo-os e subordinando-os à teoria.
A fidelidade a leis sociológicas inexistentes, segundo o autor, também pode suscitar a busca por explicações para objetos puramente "conceituais", inexistentes do ponto de vista de outros observadores.
"No limite", diz Gusmão, o "fetichismo do conceito", ou seja, a troca da pesquisa empírica por ilações dedutivas a partir de conteúdos conceituais pode nos levar a "substituir o socialmente real por fantasmagorias de realidade duvidosa".
O exemplo mais óbvio, mencionado pelo autor, é o da historiografia e sociologia apoiadas na teoria da história formulada por Marx.
"A aceitação da realidade de entidades como a 'consciência de classe revolucionária do proletariado moderno' ou a 'revolução burguesa no Brasil', longe de se impor a todos, depende completamente da adesão prévia a uma dada teoria social, no caso, o marxismo."
Críticas ao filósofo alemão são feitas hoje às baciadas. Mas costumam supor que outras explicações "teoricamente orientadas" sejam superiores ao materialismo dialético.

ABUSOS DEDUTIVOS A crítica do professor da UnB é mais ampla. Abusos dedutivos, que impõem esquemas gerais aos fatos particulares, deturpando-os, não são uma exclusividade do marxismo.
Não se trata, declara Gusmão, de negar a possibilidade de explicação de fenômenos sociais. O que ele faz, ao contrário, é tomar o partido do senso comum contra o "jaleco", num embate criado e mantido por grande número de cientistas sociais, inclusive por seus autores mais importantes, desde o século 19.
"As mais completas explicações da ação individual ou coletiva resultam essencialmente da descrição erudita, circunstanciada, de cenários sociais particulares e de esclarecimentos acerca dos valores, crenças e propósitos dos indivíduos que ali viveram e atuaram", ele diz. "Tais explicações são perfeitamente possíveis com base em conceitos sociais de senso comum."
O que o sociólogo afirma fazer, na verdade, é simplesmente constatar "a efetiva inexistência de leis sociológicas de validade geral que tenham sido empregadas, com sucesso, na explicação e predição de fenômenos sociais, leis cujas condições de aplicação tenham sido claramente estipuladas". "Eu não conheço nenhuma lei capaz de atender essas exigências", declara.

MUSEU Quanto mais amparadas em princípios dessa espécie, mais as obras sociológicas e historiográficas correm o risco de se tornar, ele diz, peças de museu, "exemplos de ambições arrogantes e fantasias infundadas, e não de realização intelectual", segundo a sentença de Isaiah Berlin. Em contraste, obras rigorosas sobre sociedades e períodos específicos, com forte apoio empírico mas imunes aos abusos teóricos, resistem ao tempo. Gusmão cita como exemplos as análises de Alexis de Tocqueville sobre a França e os EUA dos séculos 18 e 19, e de Joaquim Nabuco sobre o Brasil do final do Império e início da República.
Nessas obras, encontra-se saber análogo ao proporcionado pelas melhores obras literárias, que oferecem verdadeiros "insights" da psicologia humana, sem a necessidade de recurso a esquemas "científicos".

JARGÃO O autor de "O Fetichismo do Conceito" nos propõe então abandonar, simplesmente, todo e qualquer jargão técnico ou generalização explicativa que não possa ser traduzível em termos de conceitos e generalizações de senso comum, expressos na linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana. E usar essa capacidade de "tradução" como critério para separar o joio do trigo.
Trata-se de uma seleção, por um lado, bastante generosa, capaz de incluir entre os textos relevantes de história, política e sociologia muita coisa ainda desprezada pelos cientistas sociais, como biografias de fôlego, ensaios e livros jornalísticos. E, ao mesmo tempo, extremamente restritiva em relação às pilhas e pilhas de teses, artigos e livros produzidos todo ano pelas universidades e pelos especialistas. Pouca coisa sobrará.
O que parece, para Gusmão, inevitável. "No âmbito da investigação do socialmente real, em toda a sua concretude, a qualidade, o valor cognitivo do trabalho realizado, depende, em larguíssima proporção, de atributos intelectuais singulares, pessoais, do pesquisador, atributos esses que não podem, contudo, ser obtidos com base simplesmente numa formação profissional mais ou menos padronizada. Podemos dizer dos investigadores sociais mais notáveis aquilo que já dissemos dos filósofos, literatos e artistas de talento: infelizmente, não dispomos de fórmulas para produzi-los em série. O aprendizado teórico, os mais lúcidos bem o sabem, não muda tal situação." Nem o jaleco.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/03/2011.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Esnobando a USP

Suzana Singer

"Recebe-se com estranheza a notícia." Começava assim o editorial "Alerta na USP", publicado em 16 de março, que comentava a manchete da Folha de seis dias antes: um quarto dos estudantes aprovados na USP não se matricula.
É para estranhar mesmo. Quanta gente esquisita passa por uma prova duríssima e depois esnoba a melhor universidade do Brasil, mesmo sendo gratuita!
A reportagem da Folha trazia várias hipóteses para o fenômeno: aumento de vagas nas universidades federais, bolsas para alunos carentes estudarem em locais privados mais perto de onde moram, provas de avaliação unificadas.
Nada disso descartaria a possibilidade de a USP estar passando por uma fase de desprestígio. O editorial, mais explícito, dizia que há um "processo de acomodação e falta de criatividade" na universidade, que corre o "risco da estagnação".
No dia seguinte à manchete, a Fuvest soltou uma nota, afirmando que o percentual correto de desistentes é 16,3% e não 24%. A diferença está no número de estudantes convocados que não completaram o segundo grau (os "treineiros" que não se inscreveram nessa categoria) e nos aprovados que aguardam remanejamento para outros cursos na própria USP.
Caterina Lure Nema Paiva, 16, faz parte desses vestibulandos que confundiram as contas da Folha. Aluna do Colégio Bandeirantes, ela concorreu a uma vaga de Farmácia e Bioquímica para "ter a experiência". "Eu passei como treineira já no primeiro ano do ensino médio. Como treineiro, qualquer um passa", diz Caterina.
O engano foi discutido em uma reunião da Fuvest com os jornalistas da Folha e, depois de alguns vaivéns, o jornal publicou uma correção travestida de reportagem. Na quarta-feira passada, saiu em página interna de Cotidiano: ""Fuvest convocou 479 alunos sem ensino médio para a USP".
Embora reconhecesse que os ""treineiros desobedientes" inflaram os dados publicados, o tom não era de retificação, mas de denúncia contra a Fuvest, que chama para matrícula quem não deveria, e contra a pró-reitora de graduação, que analisou os dados a pedido da reportagem sem perceber que havia erro -na quinta-feira, Telma Zorn publicou um artigo em defesa da universidade em ""Tendências/ Debates".
Não deixa de ser expressivo que 16% dos aprovados na USP desistam de cursá-la. É um recorde -em 2005, eram 9,9%-, mas o número correto não seguraria uma manchete. O jornal escamoteou o "Erramos", em vez de seguir o "Manual de Redação": ""A Folha retifica, sem eufemismos, os erros que comete. A retificação deve ser publicada assim que a falha for constatada, mesmo que não haja pedido externo à Redação. As correções são feitas na seção "Erramos", ou, em casos de gravidade excepcional, na Primeira Página ou na capa de cadernos, aí também acompanhadas do título "Erramos'".
Para o leitor não importa que a incorreção não tenha sido culpa dos repórteres -neste caso, com os dados em mãos, eles os levaram a uma autoridade da universidade para analisá-los. O que interessa é que uma manchete estava errada, que a correção demorou a sair (13 dias é muito para um jornal diário) e não houve destaque suficiente para o novo dado.
Mas, se há responsabilidade da Redação, não deixa de ser curioso o comportamento da universidade. Diante de notícia tão bombástica, que gerou inclusive um artigo do professor José de Souza Martins no ""Estado de S. Paulo" (""Obrigado, mas preferi outra"), seria natural uma reação mais contundente.
A razão está, provavelmente, no passado. As relações da Folha com a USP não são fluidas desde a marcante ""lista dos improdutivos", a relação divulgada em 1988 com nomes de docentes que não teriam publicado nada em 1985-86.
A intelectualidade uspiana, que formava uma das bases do leitorado do jornal, sentiu-se traída, declarou guerra à Folha e, desde então, há uma desconfiança permanente entre as duas instituições.
Sempre que possível, a Folha fustiga a universidade, que se arrepia e se enrola antes de reagir. Seria saudável que esse relacionamento melhorasse -sem que o maior jornal do país tire o olho crítico da mais prestigiada universidade, que vive de dinheiro público.


* Suzana Singer é onbudsman da Folha.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/03/2011.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Poder eterno

Muito boa a charge de Angeli, publicada na Folha de S.Paulo de ontem, 20/02/2011. Bem que a Praça dos Três Poderes poderia, quem sabe, se inspirar na Praça Tahir...

João F.Quirino

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Fotografando o “progresso”

Íris Morais Araújo




Caricatura de Militão Augusto de Azevedo que anunciava o estabelecimento Carneiro & Gaspar, que o fotógrafo trabalhou nos anos 1860 e comprou em 1875, rebatizando-o Fotografia Americana. Várias insígnias de um estúdio foram utilizadas na composição. Além de Militão segurar o verso de uma fotografia com a marca do ateliê, destaca-se ainda uma imagem em moldura oval, estatuetas, cortinas, estante de livros e vários outros objetos de cena utilizados para a composição dos retratos.

Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) foi um fotógrafo pioneiro no país. Tendo atuado principalmente na cidade de São Paulo por um período de 25 anos, Militão nos deixou um conjunto valioso de imagens desse lugar em mudança.

Mas, até onde se sabe, foi quase que por acaso que o carioca Militão fixou-se na capital provincial. No começo da década de 1860, o artista morava na Corte e dedicava-se à carreira de ator, trabalhando em prestigiadas companhias teatrais. Ele só rumou para São Paulo em meados de 1862, para participar de uma temporada. Entre ensaios e apresentações, o artista encontrou tempo para realizar outra atividade: fotografar. Munido de câmera, tripé e laboratório, Militão produziu mais de noventa fotografias daquela cidade que contava com, aproximadamente, 20 mil moradores. Trata-se do conjunto de vistas urbanas mais antigo que conhecemos, hoje, da maior cidade do Brasil.

O artista acabou por se estabelecer em São Paulo, localidade que contava, naquela época, com quatro estúdios fotográficos. Versátil, ele trabalhou ao longo dos 25 anos seguintes como produtor de retratos e vistas urbanas. Também atuava como revendedor do material do ofício (como papéis e produtos químicos) para seus colegas do interior paulista.

As atividades de Militão ocorreram no período em que São Paulo vivia uma grande transformação. A cidade começava a abrigar mais e mais moradores que, como o próprio fotógrafo, vinham de outros lugares do país ou do exterior. Em 1872, tal capital contava com pouco mais de 23 mil habitantes. Catorze anos depois, em 1886, eram mais de 44 mil paulistanos. E, em 1890, a cidade já somava quase 65 mil pessoas.



“1862 – Rua Alegre. (Lado da cidade.)” e “1887 – Rua Alegre. (Lado da cidade.).”. A Rua Alegre seria muito modificada com a inauguração da estação ferroviária na Luz. Os casebres pobres que Militão fotografou daria lugar a casas em estilo europeu, com gradeado e jardim.

O crescimento da população era, porém, apenas uma das facetas da mudança. O principal marco dos novos tempos foi a inauguração, em 1867, da ferrovia que ligava o porto de Santos a Jundiaí, no interior da Província, passando pela capital. Tal fato tornava São Paulo um entroncamento entre as lavouras cafeeiras do Oeste paulista e o principal escoadouro de café para o exterior. As vantagens financeiras daquela situação eram enormes, e a tamanha concentração de riqueza transformaria a cidade rapidamente.

Considerada de feitio colonial e aspecto pobre, São Paulo passou a ser alvo de intervenções que visavam transformá-la em uma cidade moderna, condizente com sua nova situação: a de capital do café. Com o passar dos anos, várias novidades chegariam àquele lugar: iluminação pública a gás nas ruas, bondes de tração animal, ajardinamento de espaços públicos, empreendimentos comerciais, uma nova arquitetura em casas e prédios importantes.

A capital mudava aos olhos de seus moradores com uma rapidez até então desconhecida, e tal situação não passou despercebida a Militão. Em 1887, o artista tirou fotografias de vários pontos da cidade, preservando os mesmos ângulos (ou quase) daquelas imagens tiradas vinte e cinco anos antes, quando acabara de chegar a São Paulo. O objetivo era original: comparar a São Paulo “antiga”, selecionando algumas fotografias de 1862, e a “moderna”, aquela das vistas feitas em 1887.




“1862 – Rua do Comércio.” e “1887 – Rua do Comércio.” – Para fazer o par comparativo de uma das ruas mais importantes da cidade nqauele período, Militão tirou a primeira fotografia do chão, enquanto que a segunda foi feita de cima de um dos sobrados da rua.

Militão batizou seu empreendimento de Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo (1862-1887). Ele é formado por sessenta fotografias: imagens panorâmicas e tomadas de ruas, largos e prédios importantes da capital. De todo o conjunto, temos dezoito pares comparativos. A maioria das outras vistas é de 1887 e foi tirada de novos pontos da cidade, sinal de que São Paulo não parava de crescer e mudar.

O resultado é um trabalho documental cuja originalidade é não se restringir ao momento: capta o movimento e a transformação do ritmo de São Paulo. Mas, como as alterações ocorridas na cidade aparecem nas imagens? Militão soube apreender as transformações da capital naquele intervalo de tempo selecionando ângulos propícios para as tomadas das vistas urbanas. Como a idéia do artista era a de que o espectador das fotografias visse paisagens de São Paulo, Militão tomou a cidade construída como parâmetro para a produção das vistas urbanas, em vez de fotografar os moradores de São Paulo desfrutando das suas ruas e largos – mesmo assim, eles aparecem, de maneira fugaz, em algumas imagens.

Confrontando as vistas de 1862 e de 1887, o que parece se destacar é que as fotografias feitas na última data se caracterizam pela presença de certos elementos que estão ausentes nas imagens produzidas vinte e cinco anos antes: ruas e calçadas pavimentadas e iluminadas; casas comerciais, prédios públicos, privados e residências reformados ou reconstruídos segundo novos moldes; meios de transporte como bondes, carroças e tílburis (os carros de aluguel daquela época); maior circulação de pessoas nas ruas. Vendo repetidas vezes esse jogo de presença e ausência nos pares comparativos, chegamos à conclusão de que a cidade realmente não era mais a mesma.

Mas São Paulo não parou de crescer e de se transformar, especialmente após a Proclamação da República, ocorrida dois anos após o lançamento do Álbum Comparativo. O casario, os templos religiosos, as repartições, os serviços públicos e até mesmo as ruas fotografadas por Militão seriam alterados, reformados, reedificados ou demolidos. A cidade que nosso artista retratou e veiculou em seu álbum acabou por ruir e as suas imagens – sejam as de 1862, sejam as de 1887 – passaram a ser consideradas “antigas”, relacionadas ao passado de São Paulo.

Na primeira metade do século XX, à medida que a cidade mudava mais e mais, conjuntos como o Álbum Comparativo iriam se tornar comuns. Outros fotógrafos seriam incumbidos de retratar e organizar imagens da capital paulista, “antigas” e “modernas”, em novos álbuns. As imagens de Militão tornaram-se referência a esses profissionais, que tiraram fotografias dos mesmos lugares e a partir dos mesmos ângulos escolhidos por nosso artista para retratá-los em seu conjunto de vistas urbanas. Com uma câmera nas mãos e uma ideia na cabeça – “progresso” – esses fotógrafos, como Militão em 1887, fizeram imagens que buscavam apresentar o movimento daquela capital que, em certos momentos de sua história, pareceu estar em eterna transformação.

ÍRIS MORAIS ARAÚJO é antropóloga e autora de Militão Augusto de Azevedo: fotografia, história e antropologia (São Paulo: Alameda, 2010).