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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Eric Hobsbawn



O século de Hobsbawm

Vladimir Safatle


Morreu ontem Eric Hobsbawm, um dos mais influentes historiadores do século 20. Sua influência veio não apenas de um trabalho seguro e rigoroso de pesquisa historiográfica que privilegiava movimentos sociais dos séculos 19 e 20. Na verdade, em uma época como a nossa, que parece abraçar de maneira entusiasmada a crítica das chamadas "metanarrativas" com suas visões de processos globais e movimentos teleológicos, Hobsbawm destoava por ser um dos poucos que não se contentavam em afundar-se na micro-história.

Sem medo de procurar processos nos quais rupturas socioeconômicas e produção de novas ideias de cunho universalista se entrelaçam, Hobsbawm soube, como poucos, mostrar como a história da modernidade ocidental sempre foi a história das revoluções.

Fiel à filosofia da história de cunho hegeliano herdada pela tradição marxista, ele escreveu quatro livros clássicos ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios" e "Era dos Extremos") a fim de mostrar como as exigências igualitárias de liberdade enunciadas pelos setores populares da Revolução Francesa moldarão o curso da história como uma voz que sempre volta. Tal voz da igualdade será o fator de inquietude de uma história que será, cada vez mais, realmente mundial.

Adorno dizia que a fixação positivista nos "fatos" escondia, muitas vezes, a simples incapacidade de enxergar estruturas. Pensar é saber estabelecer relações e, se é inegável que certas construções da historiografia marxista demonstram-se infrutíferas e demasiado genéricas, há de se reconhecer que a rejeição em bloco dessa tradição teve forte impacto negativo na nossa capacidade de pensar a história.

Mas isso nunca impediu Hobsbawm de imergir nos detalhes e encontrar, por exemplo, na voz de Billie Holiday as marcas do sofrimento social dos esquecidos do sonho americano (conforme o livro "História Social do Jazz") ou nas desventuras do bandido Jesse James algo de fundamental a respeito dos descaminhos de nosso ideal de liberdade e das debilidades do poder (conforme o livro "Bandidos"). Hobsbawm sabia ler tais "fatos isolados" como sintomas sociais.

Alguns, como o historiador britânico Tony Judt, insistiam que Hobsbawm não teria capacidade de compreender as ilusões que moldaram o século 20, em especial o comunismo. Talvez seja o caso de dizer que a compreensão da história como simples crítica das ilusões corre o risco de perder de vista o essencial: de onde vem a força que faz com que indivíduos consigam ir além de seus próprios interesses imediatos? O que talvez explique porque quis o destino que o último livro de Hobsbawm se chamasse exatamente "Como Mudar o Mundo".

Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/10/2012.

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Hobsbawm expandiu limites do pensamento marxista

Jorge Grespan



Eric Hobsbawm conquistou justo prestígio entre o grande público apreciador da história e também entre seus colegas de ofício, o que já é em si algo digno de nota.

Claro e elegante, abordou temas aparentemente tão distintos como o mundo do trabalho e o jazz, sempre preocupando-se em relacionar as várias esferas da vida social e fugir de explicações unilaterais, pintando quadros históricos largos, mas precisos.

Incluindo-se na geração de historiadores do pós-Guerra que chamava de "modernizadores", dedicou-se inicialmente à história do século 19, e o sucesso alcançado por seu "A Era das Revoluções" levou-o a escrever "A Era do Capital" e "A Era dos Impérios".

Não os escreveu para os colegas, mas tornou-se referência também para eles, carentes de obras que rompessem limites entre temas particulares e situações nacionais.

Teve nesse ponto importância decisiva, ao criticar a historiografia acadêmica tanto por sua especialização excessiva quanto pelos preconceitos que a impedem de se dirigir a um público leigo.

Hobsbawm chegava a se apresentar como "vulgarizador". Mas não nos enganemos: atingir um público amplo significava não satisfazer a curiosidade acrítica do mercado editorial, e sim participar de um esforço formador.

Em grau e forma própria, compartilhava com colegas como Christopher Hill e E. P. Thompson de uma atitude crítica em relação ao que se consideraria próprio a um historiador marxista e, por isso, inovou nos temas e métodos, como ao escrever sobre uma de suas paixões, o jazz.

Aqui, como na obra sobre "A Invenção das Tradições", o interesse é iconoclasta. Trata-se de solapar entidades caras ao neoconservadorismo militante a partir dos anos 1970, descobrindo o lado mistificador de certos apelos ao passado legitimador.

Mais do que expressão do inconformismo racial nos EUA, o jazz é entendido no contexto da história da indústria, em especial a cultural. E tradições importantes da monarquia inglesa são examinadas e diferenciadas dos "costumes" em que se baseia o direito consuetudinário típico da ilha, para evidenciar que nelas o passado aparece como algo justificador da resistência a mudanças perigosas para os poderes constituídos.

Mostra assim aos críticos que o marxismo não precisa ser economicista. Mas o mostra também aos marxistas. Esses são seus grandes legados.

Como seria inevitável, há quem discorde de teses expostas na sua vasta obra. Mas não quem negue que ele foi um dos maiores historiadores marxistas de nossa era, cujos "extremos" parece que só começaram depois de 1991.


JORGE GRESPAN é professor do Departamento de História da USP e autor de "O Negativo do Capital" (Expressão Popular)
Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/10/2012.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Intérprete incansável do século 20

Elias Thomé Saliba



"O perfil do bom historiador não pode se parecer nem com o carvalho nem com o cedro, por mais majestosos que sejam, e sim com um pássaro migratório, igualmente à vontade no ártico e no trópico - e que sobrevoa ao menos a metade do mundo." Ao escrever isso em 2002, Eric J. Hobsbawm talvez estivesse descrevendo a própria trajetória, que se encerrou na manhã de ontem, em Londres, onde o historiador morreu aos 95 anos, vítima de uma pneumonia.
Nascido em Alexandria em 1917, de família judaica - pai do East End londrino e mãe da Áustria dos Habsburgos -, passou a infância em Viena, ficou órfão aos 14 anos e foi morar em Berlim com uma tia, entrando para o Partido Comunista alemão (KPD) ainda no fim do curso ginasial. Após a ascensão de Hitler, foi para Londres onde concluiu os estudos secundários. Em 1936, na febre da Front Populaire em Paris, perambulou na carroceria de um caminhão do cinejornal do Partido Socialista; depois cruzou a fronteira para a Catalunha, logo no início da Guerra Civil espanhola.
Nos anos da 2.ª Guerra Mundial integrou a divisão do Exército britânico que cavava trincheiras, atuando ainda como tradutor no setor de inteligência militar. Quando concluiu seus estudos, pagou o aluguel escrevendo uma coluna semanal sobre jazz no New Statesman - com o pseudônimo de Francis Newton (textos depois reunidos no livro História Social do Jazz). Em 1962, em sua segunda visita a Cuba, serviu até de tradutor para Che Guevara.
"Não se podia ensinar nada a ele, seria impossível. Eric já sabia de tudo." Assim resumiu Christopher Morris, orientador de estudos em Cambridge, quando indagado a respeito do jovem Hobsbawm: daí começou a carreira ininterrupta de um historiador instintivamente poliglota e cosmopolita em todas as suas referências e um dos raros representantes de uma geração que teve o privilégio de ser, ao mesmo tempo, testemunha e intérprete dos últimos 90 anos da história mundial.
Nas décadas de 1930/40, quando se formou, a Inglaterra era o único país onde surgiu uma escola de historiadores marxistas. Talvez porque no rol curricular das universidades inglesas a literatura havia tomado o espaço deixado pela filosofia. É que a geração de Hobsbawm - representada por nomes como Christopher Hill, Edward Thompson e Raymond Williams - adentrou a oficina da história através da paixão pela literatura. O extremo rigor da pesquisa também marcou a obra historiográfica desta geração new left, que se formou no auge do clima ideológico de suspeita da Guerra Fria. Certamente, veio da paixão pela literatura o domínio que estes historiadores tinham da escrita e o motivo pelo qual Hobsbawm tenha se tornado um mestre da prosa inglesa: sem teorizações intrincadas e nenhum traço de narcisismo autocomplacente, ele é dono de um estilo claro, conciso, equilibrando - em doses exatas - distanciamento e engajamento crítico.
"Fui um antiespecialista em um mundo de especialistas, um intelectual cujas convicções políticas e obra acadêmica foram dedicadas aos não intelectuais", escreveu em Tempos Interessantes - livro que virou um paradigma de como deveriam ser escritas todas as autobiografias. Apesar do seu precoce - e nunca explicitamente abandonado - engajamento comunista, sempre assumiu um olhar historiográfico desenraizado e pouco afetivo. Definia-se como "um historiador pertencente a minorias atípicas, imigrante na Grã-Bretanha, inglês entre centro-europeus e judeu em toda parte - sentindo-se anômalo até entre os comunistas", reconhecendo-se apenas na frase definidora que E. M. Forster utilizava para definir um poeta: "Ele ficava num ângulo ligeiramente oblíquo em relação ao universo".
O que também o tornou um pesquisador suscetível a uma versatilidade incomum. Das rebeldias primitivas ao banditismo social, das rebeliões de trabalhadores pobres ao significado do feriado do 1.º de maio, da máfia aos luddistas e às tradições inventadas -, Hobsbawm escreveu sobre os mais diversos temas, revelando domínio dos fatos e surpreendentes interpretações. Sua panorâmica história do "triunfo e transformação do capitalismo", que começa com a dupla revolução - a Primeira Revolução Industrial inglesa e a Revolução Francesa - e termina com a queda dos regimes comunistas na década de 1990 -, tornou-o mundialmente famoso. Traduzido em centenas de países, estes quatro livros - abrangendo da era das revoluções até o breve século 20 - se tornaram parte da bagagem obrigatória não apenas dos estudantes de humanidades, mas de um público bem mais amplo.
Hobsbawm sempre tinha algo importante a dizer e seus posicionamentos foram sempre críticos. Quando caiu o Muro de Berlim, muitos apressadinhos anunciaram e apegaram-se à desacreditada ideia do "fim da história". Francis Fukuyama retocou a maquiagem de um antigo livro de Alexandre Kojève sobre Hegel e colocou em circulação esse diagnóstico vistoso, mas pouquíssimo convincente - que foi solenemente abandonado depois dos eventos tristemente célebres de setembro de 2001. Hobsbawm chegou a dizer que até acreditava no "fim da história" - mas, num sentido bem diferente: é o fim da história tal como a conhecemos nos últimos 10 mil anos. Isto porque, nos primeiros anos do terceiro milênio, as mudanças estão se acelerando num ritmo estonteante, quase impossível de se acompanhar com os olhos, os conceitos - e até com as próprias palavras - que dispúnhamos para compreender o século 20.
Era sempre difícil para um historiador de formação marxista reconhecer, mas o autor de A Era dos Extremos não acreditava em saltos ou mudanças radicais no capitalismo. Nem por isto deixava de assumir uma posição impiedosamente crítica em relação à história mundial. A globalização trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais, tanto no interior das nações quanto entre elas próprias. Embora a escala real da globalização permaneça modesta, seu impacto político e cultural é desproporcionalmente grande e muito mais sensível para os que menos se beneficiam dela. Por outro lado, nos seus últimos escritos e entrevistas, Hobsbawm deixava bastante claro como estávamos enfrentando os problemas do século 21 com um pífio conjunto de mecanismos políticos, flagrantemente inadequados para resolvê-los. Sua defesa dos valores iluministas era intransigente: acreditava que eles constituíam os únicos alicerces que temos para construir sociedades justas, seja qual for o lugar da Terra e para todos os seres humanos. "Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis", escreveu no ensaio Barbárie: Manual do Usuário.
Ele próprio, apesar de "pássaro migratório", como historiador nunca perdeu seu eixo, que sempre foi o marxismo. Suas convicções políticas incluíam a hostilidade a toda forma de imperialismo, tanto das grandes potências que afirmam "estar fazendo um favor às suas vítimas ao conquistá-las, quanto a do homem branco que pressupõe uma superioridade automática sobre as pessoas cuja pele tem outra cor". Mas seu tom só se elevava quando confrontado com as lúgubres perversidades da era stalinista. O episódio da violenta intervenção soviética na Revolução Húngara em 1956 é um exemplo marcante. Certa vez, quando Arthur Koestler - irritado e em alto estado etílico numa tarde emotiva num bar austríaco - lhe cobrou a ausência de posicionamento, Hobsbawm mostrou-lhe uma carta coletiva na qual havia denunciado as atrocidades.
Mais recentemente, o historiador Tony Judt disse que Hobsbawm era admirável em sua fidelidade ao comunismo, mas alfinetou: "Para fazer algum bem no novo século, devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo e um historiador do seu quilate não poderia mais se recusar a encarar o demônio e chamá-lo pelo nome: o stalinismo e todos os seus crimes hediondos". Hobsbawm respondeu que as críticas de Judt eram improcedentes, pois em A Era dos Extremos encarava o problema, criticando-o. Retrucou ainda que condenava "aqueles intelectuais anticomunistas que hoje têm apenas uma bandeira única, a de serem exclusivamente anticomunistas, esquecendo-se completamente das ideias pelas quais lutavam". "Judt deseja apenas que eu diga que estava errado - e não vou satisfazê-lo", finalizou Hobsbawm. A polêmica não rendeu, parando nestas tantas cutiladas curtas, até porque logo depois Judt cairia doente e morreria. É pena. Pois o debate poderia se alongar, ao refletir sobre o imenso abismo ético que se abriu entre os intelectuais europeus do "leste" e os "ocidentais" em função da própria história e da experiência de cada um com o comunismo. Abismo que se mantém até hoje.
Perscrutador incansável do seu século, Hobsbawm deixou uma obra que é aula magistral de história contemporânea. Ele sabia ainda, quando necessário, provocar o leitor com tiradas irônicas. Seu relato dos estertores da democracia alemã, no fim da República de Weimar, é resumido numa única frase: "Estávamos no Titanic, e todos sabiam que ele estava batendo no iceberg". Ao discorrer sobre os movimentos estudantis dos anos 1960, ele chegava a argumentar que "a marca distintiva realmente importante na história da segunda metade do século 20 não é a ideologia nem as ocupações estudantis, e sim o avanço do jeans". E, finalmente, ao refletir sobre o poder em geral, sintetiza-o simplesmente pela megalomania, que ele define como "a doença ocupacional dos países e dos governantes que creem que seu poder e seu êxito não têm limites".
Um humorista inglês brincou, certa vez, definindo a escola de historiadores marxistas de Hobsbawm como os "cavaleiros da távola redonda em busca do perdido Graal". Com a morte de Hobsbawm desaparece um dos mais brilhantes historiadores de nossa época e talvez o último daquela primeira geração de marxistas, para os quais a Revolução de Outubro - uma espécie de Graal - era referência central no horizonte político. Marca também o desaparecimento de um dos últimos historiadores que colaram de tal forma sua trajetória de vida com a história pública, que elas parecem indistinguíveis. "O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no computador lá permanece, à espera dos técnicos que o recuperem dos discos rígidos", confessou Hobsbawm. E em lacônica resposta à tirada humorística, concluiu: "Porque se desistirmos do Graal, desistiremos de nós mesmos".
Ao menos na França, Eric Hobsbawn foi tratado em sua morte como em vida - como um maldito. A história da ruptura entre a intelligentsia francesa e o pensador marxista foi escancarada ao longo dos anos 90, quando da publicação seu mais célebre livro, A Era dos Extremos. Seu trabalho foi reconhecido e ganhou conversão "a todas as línguas oficiais da União Europeia, salvo uma", como ele dizia. Ganhou ainda versões "nas línguas dos antigos Estados comunistas da Europa central e oriental", em polonês, em checo, em romeno, esloveno, em albanês. Só então, graças à iniciativa de um editor belga e do jornal Le Monde Diplomatique, a tradução para a língua de Rousseau, enfim, aconteceu.
A melhor explicação para a indiferença talvez tenha sido dada por uma revista americana: "O apego, mesmo distante, à causa revolucionária, Eric Hobsbawn o cultiva certamente como um ponto de orgulho, uma fidelidade orgulhosa, uma reação ao tempo. Mas, na França, e neste momento, é difícil de engolir".
A soberba da intelligentsia francesa imperou nesta segunda-feira. Foi necessário que Pierre Laurent, um intelectual de esquerda, viesse a público para uma homenagem ao autor. "Os progressistas perdem um dos seus. Todos aqueles que se interessam pela história do século 20 perdem um grande espírito, um pensamento-mundo."

ANDREI NETTO, DE PARIS
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 02/10/2012.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O paradigma

John Naughton




Teoria sobre revoluções científicas faz 50 anos


Há 50 anos, a editora da Universidade de Chicago lançou um dos livros mais influentes do século 20: "A Estrutura das Revoluções Científicas", de Thomas Kuhn. Para tirar a prova, basta pensar se você já ouviu ou empregou a expressão "mudança de paradigma", provavelmente a mais usada -e abusada- nas discussões contemporâneas sobre mudança organizacional e progresso intelectual.

A sacada de Kuhn surgiu da compreensão de que, se alguém deseja entender a ciência aristotélica, precisa conhecer a tradição intelectual na qual Aristóteles trabalhava. Para ele, o termo "movimento" queria dizer mudança em geral - não só a mudança de posição de um corpo, hoje.

Essa percepção é o propulsor do livro de Kuhn, que foi lançado em 1962, com 172 páginas. O autor se referia à edição como "um simples rascunho". Sem dúvida preferiria ter escrito um tijolo de 800 páginas. A legibilidade e a relativa brevidade do tal "rascunho" foram cruciais para o seu sucesso.

A proposição central é que um estudo cuidadoso da história da ciência revela que o desenvolvimento, em qualquer campo científico, acontece em fases. A primeira é a "ciência normal". Nessa fase, uma comunidade de pesquisadores que compartilha uma estrutura intelectual - "paradigma" ou "matriz disciplinar" - se envolve na solução de enigmas gerados por discrepâncias (anomalias) entre o que o paradigma prevê e o que a observação ou experimento revela.

Em geral, as anomalias são resolvidas por alterações graduais de paradigma ou pela constatação de erros de observação ou nos experimentos. Como define o filósofo Ian Hacking em seu prefácio para a nova edição de "A Estrutura das Revoluções Científicas", "a ciência normal não busca novidade, mas limpar o status quo. Tende a descobrir o que espera descobrir".

O problema é que em períodos mais longos as anomalias não resolvidas se acumulam e a situação força os cientistas a questionar o paradigma. Quando isso acontece, a disciplina entra em crise, caracterizada, nas palavras de Kuhn, por "uma proliferação de articulações convincentes, a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate de preferência aos fundamentos".

A crise é resolvida por uma mudança revolucionária de visão do mundo, na qual o paradigma deficiente é substituído por um novo. É a "mudança de paradigma" que se tornou clichê, e depois que ela acontece o campo científico retorna à ciência normal, mas com nova estrutura. E o ciclo recomeça.

O que mais incomodou os filósofos foi o argumento segundo o qual paradigmas concorrentes são "incomensuráveis", ou seja, não há modo objetivo de avaliar seus méritos. Não há, por exemplo, como testar os méritos comparativos da mecânica newtoniana (que se aplica a planetas e bolas de bilhar, mas não ao que acontece dentro do átomo) e da mecânica quântica (que trata do nível subatômico).

Mas, se os paradigmas rivais forem de fato incomensuráveis, isso não implicaria que as revoluções científicas, ao menos em parte, tivessem bases irracionais?

A grande ideia de Kuhn -a de um "paradigma" como estrutura intelectual que torna a pesquisa possível- ganhou vida própria. Charlatães, marqueteiros e administradores de empresas a usam para convencer seus clientes da necessidade de mudanças em sua visão de mundo. E cientistas sociais viram uma rota para a respeitabilidade e as verbas de pesquisa, o que por sua vez resultou na emergência de paradigmas patológicos em áreas como a economia.

A ideia mais intrigante, porém, é a de usar o pensamento de Kuhn para interpretar sua realização. Discreto, ele causou uma revolução conceitual mudar nossa compreensão da ciência. Mas as anomalias já começam a se acumular. Kuhn acreditava que a ciência girasse em torno de teorias, mas uma vanguarda cada vez mais forte usa pesquisas baseadas não em teorias, mas em dados.

E, embora a física fosse indubitavelmente a rainha das ciências, quando o livro de Kuhn foi escrito, esse papel agora é da genética molecular e da biotecnologia. Será que sua análise se aplica a essas novas áreas? Se não, será o momento de uma mudança de paradigma?


Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/09/2012.
Publicado originalmente no “The Guardian”
Tradução: PAULO MIGLIACCI

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Os novos elitistas

Shamus Khan



Pode-se saber muito das pessoas por suas coleções de músicas. Algumas têm gostos estreitos e possuem, sobretudo, gêneros únicos como rap ou heavy metal. Outras são bem mais ecléticas, suas coleções estão cheias de hip-hop e jazz, country e clássico, blues e rock. Nós geralmente pensamos nessas diferenças como uma questão de gosto e expressão individual. Mas elas são explicadas, em grande parte, pelos antecedentes sociais. Pessoas mais pobres são mais propensas a ter os gostos singulares ou "limitados". Os ricos têm os mais expansivos.

Observamos um padrão semelhante em outros tipos de consumo. Pensem nos restaurantes preferidos dos nova-iorquinos muito ricos. O Masa, onde uma refeição para dois pode custar US$ 1.500, está na lista, mas também um local barato de comida chinesa no Queens. Os sociólogos têm um nome para isso. As elites de hoje não são "esnobes intelectuais". São "onívoras culturais". Esse caráter onívoro é parte de uma tendência mais ampla no comportamento de nossa elite, uma tendência que abraça a diversidade.

As barreiras que um dia foram um esteio das instituições culturais e educacionais da elite foram demolidas. Acabaram-se as cotas que mantinham judeus fora dos colégios e universidades de elite. A inclusão é agora a norma. Uma programação diversificada e populista é o sustentáculo de qualquer museu. As elites parecem mais propensas a contestar a exclusão esnobe do que a adotá-la.

Nem sempre foi assim. Em 1880, William Vanderbilt tentou comprar um dos cobiçados 18 camarotes na New York Academy of Music na Rua 14 oferecendo US$ 30 mil por ele. Vanderbilt representava o dinheiro novo e, para as famílias antigas que controlavam a academia, sua tentativa de comprar a entrada num lugar reservado a elas foi uma grossa afronta à sua dignidade. O dinheiro pode ser rei em algumas partes da sociedade nova-iorquina, mas nem tudo pode ser comprado.

Ou assim parecia. Após a rejeição dessa proposta, Vanderbilt juntou-se a outras famílias de novos ricos como os Gould, Rockefeller e Whitney e fundou a Metropolitan Opera House Company. Embora a velha elite acabasse sendo obrigada a se unir à nova elite na Metropolitan Opera após sua academia mergulhar na ruína financeira, ela o fez num espaço onde ainda se sentia confortável: uma casa de ópera. Templos modernos do poder foram construídos sobre as fundações dos antigos. As novas elites eram, com frequência, conservadoras em seus gostos - construindo mansões que imitavam as de aristocratas europeus, comprando obras de Velhos Mestres e construindo santuários para formas de arte europeias.

Originalmente, as famílias antigas de Nova York formavam uma casta de elite definida por sua linhagem e não eram ameaçadas pelo fato de compartilharem muitos dos mesmos gostos dos homens comuns. Durante boa parte do século 19, as diferenças culturais entre as elites e os demais não eram tão grandes. Shakespeare e ópera tinham um apelo de massa. Assistir a um concerto noturno na New York Academy of Music poderia significar ouvir Verdi, mas também um pouco de música sacra.

Foi a junção dos "barões ladrões" (os novos magnatas do período) à elite que forjou uma mudança. À medida que o acesso ao status de elite tornava-se menos limitado a laços de família e mais aberto a homens da nova riqueza, os nova-iorquinos descobriram um novo mecanismo de entrincheiramento social. Criaram uma cultura exclusiva, distinta daquela do americano comum, cujo resultado era bem mais elitista. Por meio do esnobismo, as elites tornaram-se uma classe. Desenvolveram uma cultura e uma sensibilidade comuns. Também compartilhavam inimigos comuns.

As elites temiam a gentalha que chegava ao país em navios provenientes da Europa - 8 milhões de pessoas entre 1955 e 1890. Os ricos mudaram-se, então, para a parte alta da cidade. As elites construíam fossos e cercas não só em torno de seus bairros, mas também em torno de artefatos culturais. A Metropolitan Opera fazia performances culturais mais "puras". Os preços caros dos ingressos tornaram a música popular de Verdi menos acessível; não demorou para ficarem apenas os ricos para desfrutar dessa música. Era o nascimento da moderna elite da classe alta.

O tanto que percorremos! Nossos onívoros modernos taparam os fossos e derrubaram as cercas. Com a transformação de exclusão e esnobismo em relíquias, o mundo está disponível para os mais talentosos tirarem proveito. Falar em "cultura de elite", assim parece, é falar de alguma coisa bizarra, alguma coisa antiamericana e antidemocrática. Enquanto as velhas elites usavam sua cultura para explicitar as diferenças entre elas e os demais, se alguém fosse falar hoje a membros da elite, muitos lhe diriam que sua cultura é simplesmente uma expressão de sua mente aberta, criativa, de sua ética da prontidão para agarrar cada oportunidade. Outros até recusariam a ideia de que são parte de uma elite. Mas se olharmos para o onívoro de outro ponto de vista, surge um quadro muito diferente.

Diferentemente do caráter de classe comum das elites da Gilded Age, os onívoros parecem altamente distintos e seu gosto parece ser uma questão de expressão pessoal. Em vez de gostar de coisas como ópera porque é disso que pessoas de sua classe supostamente deveriam gostar, o onívoro gosta do que gosta porque é uma expressão de uma personalidade distinta. Gostar de um leque de coisas talvez explique por que as elites são elite. Por contraste, os que têm gostos exclusivos hoje - americanos de classe média e mais pobres - são objetos de desdém. Se o mundo é aberto e a pessoa não se aproveita disso, é porque ela é simplesmente limitada. Talvez sejam esses os atributos que explicam sua incapacidade de obter sucesso.

Portanto, se as elites têm hoje uma cultura, esta é a do autocultivo individual. Sua retórica acentua esse individualismo e os talentos necessários para "fazê-lo". Mas há algo de pernicioso nessa autorrepresentação. A narrativa de abertura e talento obscurece a amarga verdade da experiência americana. Desenvolver talentos é caro, e nós nos recusamos a socializar esses custos. Ser um aluno extraordinário não requer apenas inteligência e dedicação, mas uma escola bem amparada, um lar seguro e confortável, e tempo de lazer para cultivar a própria personalidade. Essas coisas não estão amplamente disponíveis. Quando alguns alunos batalham, eles podem mais tarde contar a história de seu triunfo sobre a adversidade, geralmente sem mencionar a mão amiga de um tutor. Outros estudantes simplesmente fracassam sem essas ajudas dispendiosas.

Há nisso mais que platitudes liberais. Reparem em quem são os membros mais "talentosos" da sociedade: os filhos dos já beneficiados. Os EUA têm hoje menos mobilidade econômica intergeracional do que quase todos os países do mundo industrializado; hoje, uma das melhores maneiras de prever se a pessoa será membro da elite é ver se os seus pais são da elite. A história de elite sobre o triunfo do indivíduo onívoro com talentos diversificados é mito. Ao sugerir que é seu trabalho e não sua riqueza, que são os seus talentos e não sua linhagem, as elites atribuem a desigualdade aos que nossa promessa democrática abandonou.

As elites de hoje precisam reconhecer que se parecem muito com as velhas elites da Gilded Age. Paradoxalmente, a própria abertura e largueza que elas tão calidamente abraçam - sua onivoridade - ajuda a defini-las como culturalmente diferentes dos demais. E elas mobilizam essa diferença cultural para sugerir que a desigualdade e imobilidade de nossa sociedade é mais merecida do que herdada. Mas se eles puderem reconhecer a base de classe do seu sucesso, talvez possam também reconhecer sua responsabilidade de classe. Eles têm uma dívida para com os outros por suas fortunas, e perceber isso também pode ajudar as elites a perceber que os pobres são governados por uma dinâmica semelhante: sua posição atual é mais frequentemente propensa a uma história que não é de sua própria escolha ou responsabilidade.

Já passou da hora de as elites abandonarem o projeto cultural de mostrar como elas são diferentes dos outros. Elas antes deveriam se comprometer a reconhecer que existe uma comunidade que todos temos a responsabilidade de melhorar. 


TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
* SHAMUS KHAN É PROFESSOR-ASSISTENTE DE SOCIOLOGIA NA UNIVERSIDADE COLUMBIA
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/07/2012. Também publicado no New York Times

terça-feira, 3 de julho de 2012

Os males do jargão

Marcelo Coelho


Tempos atrás, parecia que todos os motoristas de táxi de São Paulo votavam em Paulo Maluf.
 Na minha experiência, isso mudou; já conversei com taxistas a favor de Marta Suplicy e até com um que admirava o PC do B.

O que terá ocasionado essa mudança? E por que tanto malufismo nos táxis de antigamente? Uma reportagem da Folha, anos atrás, mostrava que a categoria tinha se beneficiado de várias iniciativas de Maluf quando ele era prefeito.

Era uma boa explicação. Podemos pensar em outras. Nem sempre as convicções de uma pessoa são efeito direto de seus interesses corporativos.

O malufismo em geral também declinou, fundindo-se sem contraste com seus antigos adversários. Por que fincar pé no freio malufista quando surge o convite de derrapar com Fernando Haddad?

Outra possibilidade. Será que os programas de rádio andam mais diversificados, com locutores menos opinativos e direitistas do que antes?

Não terá sido a própria origem social dos motoristas que mudou com o tempo? Há relação entre preferência malufista e níveis mais altos de instrução? Ou com melhoras eventuais no trânsito, decorrentes de novas obras?

 O sindicato dos taxistas influenciava mais do que hoje o voto de seus membros? Qual era o peso do malufismo em seus dirigentes?

 O número de perguntas poderia multiplicar-se, mas não é infinito. As explicações podem ser outras, mas é razoável dizer que perderia tempo quem quisesse relacionar essa mudança de mentalidade a uma alteração no nível de octanagem da gasolina. Ou à passagem de Mercúrio pelo segundo decanato no momento da entrevista.

 Digo isso para assinalar pontos de interesse acadêmico, fora dos desconchavos da atual campanha.
 Primeiro ponto: importante ou não, a pergunta sobre a atitude eleitoral dos taxistas faz parte de uma coisa chamada ciência social.

 Segundo, essa ciência, embora menos exata do que outras, procura respostas comprováveis e fatuais. Serão aceitas até que outra melhor apareça.

 Terceiro ponto: um conhecimento objetivo sobre comportamentos humanos tem, é claro, uma série de pressupostos teóricos. Por uma série de motivos, que seria ocioso explicitar, acreditamos que a octanagem da gasolina ou a órbita de Mercúrio não mudam o malufismo de ninguém.

 Quarto ponto: embora localizada, a pergunta sobre o malufismo dos motoristas pode inspirar novas questões: o rádio influencia as eleições? Quanto? O sindicato de uma categoria é decisivo no comportamento eleitoral de seus membros?

 Perguntas complexas, mas não desesperadoras.

 Existe, contudo, uma poderosa força capaz de atrapalhar investigações desse tipo. Imagine-se o jovem sociólogo, em busca de um título de mestre ou doutor, querendo responder a essas perguntas.

 A tendência seria formulá-las com mais sofisticação. E é quase certo que o conceito de "ideologia" vai entrar em cena.

 Antes de qualquer pesquisa fatual, será preciso então definir o termo "ideologia". Há bibliotecas a respeito, alimentando a famosa "introdução teórica" que comparece em tantas teses acadêmicas.

 Quando fiz meu mestrado, sobre (hum) "a ideologia do desenvolvimentismo" nos anos Kubitschek, tive de ler um livro sobre o assunto em que a introdução teórica tinha mais de cem páginas, revolvendo as cinzas de Gramsci. A relação daquilo com o corpo do trabalho era das mais tênues.

 "O Fetichismo do Conceito", livro de Luís de Gusmão que acaba de sair pela Topbooks, faz um serviço e tanto demolindo esse tipo de superstição da linguagem acadêmica.

 Doutor pela USP e professor na UnB, Gusmão demonstra detalhadamente de que modo o uso puramente ornamental dos famosos "conceitos teóricos" pode prejudicar o conhecimento sociológico; o uso da linguagem corrente, em vez do jargão, pode ser recomendado na vasta maioria dos casos.

 Claro que a teoria é importante. Há teoria (lembrando uma frase de Karl Popper) até para dizer que um copo d'água está em cima da mesa. Mas seria insensato exigir a "base teórica" desse tipo de formulação.

 O livro, para o qual escrevi o posfácio, haverá de ser acusado de simplismo. Quem se der ao trabalho de lê-lo, em especial a longa análise que Gusmão faz da obra de Sérgio Buarque de Holanda, verá que não há simplismo nenhum.

 Sem conter ataques pessoais, o livro demonstra muita dureza polêmica. Mas seria injusto acusar de simplismo quem se dispõe, com paciência e rigor notáveis, a mostrar que o rei está nu.
 

coelhofsp@uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 20.06.2012.

Piratas do Tietê - Laerte



Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/07/2012.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Pierucci, o professor

João Felício Quirino




Antônio Flávio Pierucci era opinião obrigatória nos principais jornais sempre que as transformações religiosas no Brasil era o assunto tratado. Sociólogo respeitado, de notória inteligência, autor de vários livros, Pierucci teve nas religiões e no pensamento de Max Weber as principais inspirações de sua produção intelectual.

Eu não conseguia desassociar sua imagem da do grande sociólogo alemão. Logo que soube da morte de Pierucci, num ato talvez instintivo, corri para minha biblioteca e apanhei o exemplar de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” e a pasta com textos de Weber. Era o material utilizado nas aulas de curso ministrado no segundo semestre do longínquo ano de 1992: “Sociologia IV”, para a graduação em Ciências Sociais, na USP.

Comecei a folhear o material e encontrei uma prova. Quatro folhas manuscritas por mim, em tinta azul, ao longo das quais se encaixavam anotações do professor, em vermelho. Eis o estilo de Pierucci: não deixava comentários sem ponderações. Tinha um semblante compenetrado, sempre sério, mas não carrancudo, nem tampouco propenso a sorrisos fáceis. Inteligente, seu grande mérito para mim foi o de mostrar o quão instigante era seu objeto de estudo. Além disso, o de trabalhar o aluno de modo a mostrar suas falhas e necessidades de correção analítica, ao mesmo tempo em que destacava seus acertos, quiçá uma estratégia de, pelo ego, incentivá-lo a desenvolver o pensamento. Um bom exemplo disso é seu comentário final na tal prova:

João, há uma elaboração pessoal muito interessante em toda a extensão desta longa prova. Mas você deve ter cuidado para que neste movimento de se apropriar e elaborar em outros termos o pensamento de um autor, a clareza não se perca, nem se perca também a precisão dos conceitos produzidos pelo autor. Minha sensação é a de que você quase evita usar os mesmos termos do autor. Por quê? Se fosse para melhorar o resultado final, tudo bem, mas o efeito que você consegue não é este. O efeito é um “plus” de imprecisão e obscuridade, de um monte de “não entendi” da minha parte, que, modéstia à parte, entendo muito de Max Weber. Mas valeu, valeu, valeu. Há momentos brilhantes em tua prova. Um abraço.”

Além do intelectual renomado, lembro-me de Antônio Flávio Pierucci como um ótimo professor. Com sua calma e seu jeito de conciliar críticas, reparos e incentivos, demonstrava respeito por seus alunos e habilidade em transmitir-lhes o interesse pela obra de Max Weber.

Valeu, valeu, valeu, professor!