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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Os novos elitistas

Shamus Khan



Pode-se saber muito das pessoas por suas coleções de músicas. Algumas têm gostos estreitos e possuem, sobretudo, gêneros únicos como rap ou heavy metal. Outras são bem mais ecléticas, suas coleções estão cheias de hip-hop e jazz, country e clássico, blues e rock. Nós geralmente pensamos nessas diferenças como uma questão de gosto e expressão individual. Mas elas são explicadas, em grande parte, pelos antecedentes sociais. Pessoas mais pobres são mais propensas a ter os gostos singulares ou "limitados". Os ricos têm os mais expansivos.

Observamos um padrão semelhante em outros tipos de consumo. Pensem nos restaurantes preferidos dos nova-iorquinos muito ricos. O Masa, onde uma refeição para dois pode custar US$ 1.500, está na lista, mas também um local barato de comida chinesa no Queens. Os sociólogos têm um nome para isso. As elites de hoje não são "esnobes intelectuais". São "onívoras culturais". Esse caráter onívoro é parte de uma tendência mais ampla no comportamento de nossa elite, uma tendência que abraça a diversidade.

As barreiras que um dia foram um esteio das instituições culturais e educacionais da elite foram demolidas. Acabaram-se as cotas que mantinham judeus fora dos colégios e universidades de elite. A inclusão é agora a norma. Uma programação diversificada e populista é o sustentáculo de qualquer museu. As elites parecem mais propensas a contestar a exclusão esnobe do que a adotá-la.

Nem sempre foi assim. Em 1880, William Vanderbilt tentou comprar um dos cobiçados 18 camarotes na New York Academy of Music na Rua 14 oferecendo US$ 30 mil por ele. Vanderbilt representava o dinheiro novo e, para as famílias antigas que controlavam a academia, sua tentativa de comprar a entrada num lugar reservado a elas foi uma grossa afronta à sua dignidade. O dinheiro pode ser rei em algumas partes da sociedade nova-iorquina, mas nem tudo pode ser comprado.

Ou assim parecia. Após a rejeição dessa proposta, Vanderbilt juntou-se a outras famílias de novos ricos como os Gould, Rockefeller e Whitney e fundou a Metropolitan Opera House Company. Embora a velha elite acabasse sendo obrigada a se unir à nova elite na Metropolitan Opera após sua academia mergulhar na ruína financeira, ela o fez num espaço onde ainda se sentia confortável: uma casa de ópera. Templos modernos do poder foram construídos sobre as fundações dos antigos. As novas elites eram, com frequência, conservadoras em seus gostos - construindo mansões que imitavam as de aristocratas europeus, comprando obras de Velhos Mestres e construindo santuários para formas de arte europeias.

Originalmente, as famílias antigas de Nova York formavam uma casta de elite definida por sua linhagem e não eram ameaçadas pelo fato de compartilharem muitos dos mesmos gostos dos homens comuns. Durante boa parte do século 19, as diferenças culturais entre as elites e os demais não eram tão grandes. Shakespeare e ópera tinham um apelo de massa. Assistir a um concerto noturno na New York Academy of Music poderia significar ouvir Verdi, mas também um pouco de música sacra.

Foi a junção dos "barões ladrões" (os novos magnatas do período) à elite que forjou uma mudança. À medida que o acesso ao status de elite tornava-se menos limitado a laços de família e mais aberto a homens da nova riqueza, os nova-iorquinos descobriram um novo mecanismo de entrincheiramento social. Criaram uma cultura exclusiva, distinta daquela do americano comum, cujo resultado era bem mais elitista. Por meio do esnobismo, as elites tornaram-se uma classe. Desenvolveram uma cultura e uma sensibilidade comuns. Também compartilhavam inimigos comuns.

As elites temiam a gentalha que chegava ao país em navios provenientes da Europa - 8 milhões de pessoas entre 1955 e 1890. Os ricos mudaram-se, então, para a parte alta da cidade. As elites construíam fossos e cercas não só em torno de seus bairros, mas também em torno de artefatos culturais. A Metropolitan Opera fazia performances culturais mais "puras". Os preços caros dos ingressos tornaram a música popular de Verdi menos acessível; não demorou para ficarem apenas os ricos para desfrutar dessa música. Era o nascimento da moderna elite da classe alta.

O tanto que percorremos! Nossos onívoros modernos taparam os fossos e derrubaram as cercas. Com a transformação de exclusão e esnobismo em relíquias, o mundo está disponível para os mais talentosos tirarem proveito. Falar em "cultura de elite", assim parece, é falar de alguma coisa bizarra, alguma coisa antiamericana e antidemocrática. Enquanto as velhas elites usavam sua cultura para explicitar as diferenças entre elas e os demais, se alguém fosse falar hoje a membros da elite, muitos lhe diriam que sua cultura é simplesmente uma expressão de sua mente aberta, criativa, de sua ética da prontidão para agarrar cada oportunidade. Outros até recusariam a ideia de que são parte de uma elite. Mas se olharmos para o onívoro de outro ponto de vista, surge um quadro muito diferente.

Diferentemente do caráter de classe comum das elites da Gilded Age, os onívoros parecem altamente distintos e seu gosto parece ser uma questão de expressão pessoal. Em vez de gostar de coisas como ópera porque é disso que pessoas de sua classe supostamente deveriam gostar, o onívoro gosta do que gosta porque é uma expressão de uma personalidade distinta. Gostar de um leque de coisas talvez explique por que as elites são elite. Por contraste, os que têm gostos exclusivos hoje - americanos de classe média e mais pobres - são objetos de desdém. Se o mundo é aberto e a pessoa não se aproveita disso, é porque ela é simplesmente limitada. Talvez sejam esses os atributos que explicam sua incapacidade de obter sucesso.

Portanto, se as elites têm hoje uma cultura, esta é a do autocultivo individual. Sua retórica acentua esse individualismo e os talentos necessários para "fazê-lo". Mas há algo de pernicioso nessa autorrepresentação. A narrativa de abertura e talento obscurece a amarga verdade da experiência americana. Desenvolver talentos é caro, e nós nos recusamos a socializar esses custos. Ser um aluno extraordinário não requer apenas inteligência e dedicação, mas uma escola bem amparada, um lar seguro e confortável, e tempo de lazer para cultivar a própria personalidade. Essas coisas não estão amplamente disponíveis. Quando alguns alunos batalham, eles podem mais tarde contar a história de seu triunfo sobre a adversidade, geralmente sem mencionar a mão amiga de um tutor. Outros estudantes simplesmente fracassam sem essas ajudas dispendiosas.

Há nisso mais que platitudes liberais. Reparem em quem são os membros mais "talentosos" da sociedade: os filhos dos já beneficiados. Os EUA têm hoje menos mobilidade econômica intergeracional do que quase todos os países do mundo industrializado; hoje, uma das melhores maneiras de prever se a pessoa será membro da elite é ver se os seus pais são da elite. A história de elite sobre o triunfo do indivíduo onívoro com talentos diversificados é mito. Ao sugerir que é seu trabalho e não sua riqueza, que são os seus talentos e não sua linhagem, as elites atribuem a desigualdade aos que nossa promessa democrática abandonou.

As elites de hoje precisam reconhecer que se parecem muito com as velhas elites da Gilded Age. Paradoxalmente, a própria abertura e largueza que elas tão calidamente abraçam - sua onivoridade - ajuda a defini-las como culturalmente diferentes dos demais. E elas mobilizam essa diferença cultural para sugerir que a desigualdade e imobilidade de nossa sociedade é mais merecida do que herdada. Mas se eles puderem reconhecer a base de classe do seu sucesso, talvez possam também reconhecer sua responsabilidade de classe. Eles têm uma dívida para com os outros por suas fortunas, e perceber isso também pode ajudar as elites a perceber que os pobres são governados por uma dinâmica semelhante: sua posição atual é mais frequentemente propensa a uma história que não é de sua própria escolha ou responsabilidade.

Já passou da hora de as elites abandonarem o projeto cultural de mostrar como elas são diferentes dos outros. Elas antes deveriam se comprometer a reconhecer que existe uma comunidade que todos temos a responsabilidade de melhorar. 


TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
* SHAMUS KHAN É PROFESSOR-ASSISTENTE DE SOCIOLOGIA NA UNIVERSIDADE COLUMBIA
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/07/2012. Também publicado no New York Times

terça-feira, 3 de julho de 2012

Os males do jargão

Marcelo Coelho


Tempos atrás, parecia que todos os motoristas de táxi de São Paulo votavam em Paulo Maluf.
 Na minha experiência, isso mudou; já conversei com taxistas a favor de Marta Suplicy e até com um que admirava o PC do B.

O que terá ocasionado essa mudança? E por que tanto malufismo nos táxis de antigamente? Uma reportagem da Folha, anos atrás, mostrava que a categoria tinha se beneficiado de várias iniciativas de Maluf quando ele era prefeito.

Era uma boa explicação. Podemos pensar em outras. Nem sempre as convicções de uma pessoa são efeito direto de seus interesses corporativos.

O malufismo em geral também declinou, fundindo-se sem contraste com seus antigos adversários. Por que fincar pé no freio malufista quando surge o convite de derrapar com Fernando Haddad?

Outra possibilidade. Será que os programas de rádio andam mais diversificados, com locutores menos opinativos e direitistas do que antes?

Não terá sido a própria origem social dos motoristas que mudou com o tempo? Há relação entre preferência malufista e níveis mais altos de instrução? Ou com melhoras eventuais no trânsito, decorrentes de novas obras?

 O sindicato dos taxistas influenciava mais do que hoje o voto de seus membros? Qual era o peso do malufismo em seus dirigentes?

 O número de perguntas poderia multiplicar-se, mas não é infinito. As explicações podem ser outras, mas é razoável dizer que perderia tempo quem quisesse relacionar essa mudança de mentalidade a uma alteração no nível de octanagem da gasolina. Ou à passagem de Mercúrio pelo segundo decanato no momento da entrevista.

 Digo isso para assinalar pontos de interesse acadêmico, fora dos desconchavos da atual campanha.
 Primeiro ponto: importante ou não, a pergunta sobre a atitude eleitoral dos taxistas faz parte de uma coisa chamada ciência social.

 Segundo, essa ciência, embora menos exata do que outras, procura respostas comprováveis e fatuais. Serão aceitas até que outra melhor apareça.

 Terceiro ponto: um conhecimento objetivo sobre comportamentos humanos tem, é claro, uma série de pressupostos teóricos. Por uma série de motivos, que seria ocioso explicitar, acreditamos que a octanagem da gasolina ou a órbita de Mercúrio não mudam o malufismo de ninguém.

 Quarto ponto: embora localizada, a pergunta sobre o malufismo dos motoristas pode inspirar novas questões: o rádio influencia as eleições? Quanto? O sindicato de uma categoria é decisivo no comportamento eleitoral de seus membros?

 Perguntas complexas, mas não desesperadoras.

 Existe, contudo, uma poderosa força capaz de atrapalhar investigações desse tipo. Imagine-se o jovem sociólogo, em busca de um título de mestre ou doutor, querendo responder a essas perguntas.

 A tendência seria formulá-las com mais sofisticação. E é quase certo que o conceito de "ideologia" vai entrar em cena.

 Antes de qualquer pesquisa fatual, será preciso então definir o termo "ideologia". Há bibliotecas a respeito, alimentando a famosa "introdução teórica" que comparece em tantas teses acadêmicas.

 Quando fiz meu mestrado, sobre (hum) "a ideologia do desenvolvimentismo" nos anos Kubitschek, tive de ler um livro sobre o assunto em que a introdução teórica tinha mais de cem páginas, revolvendo as cinzas de Gramsci. A relação daquilo com o corpo do trabalho era das mais tênues.

 "O Fetichismo do Conceito", livro de Luís de Gusmão que acaba de sair pela Topbooks, faz um serviço e tanto demolindo esse tipo de superstição da linguagem acadêmica.

 Doutor pela USP e professor na UnB, Gusmão demonstra detalhadamente de que modo o uso puramente ornamental dos famosos "conceitos teóricos" pode prejudicar o conhecimento sociológico; o uso da linguagem corrente, em vez do jargão, pode ser recomendado na vasta maioria dos casos.

 Claro que a teoria é importante. Há teoria (lembrando uma frase de Karl Popper) até para dizer que um copo d'água está em cima da mesa. Mas seria insensato exigir a "base teórica" desse tipo de formulação.

 O livro, para o qual escrevi o posfácio, haverá de ser acusado de simplismo. Quem se der ao trabalho de lê-lo, em especial a longa análise que Gusmão faz da obra de Sérgio Buarque de Holanda, verá que não há simplismo nenhum.

 Sem conter ataques pessoais, o livro demonstra muita dureza polêmica. Mas seria injusto acusar de simplismo quem se dispõe, com paciência e rigor notáveis, a mostrar que o rei está nu.
 

coelhofsp@uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 20.06.2012.

Piratas do Tietê - Laerte



Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/07/2012.