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terça-feira, 12 de junho de 2012

Pierucci, o professor

João Felício Quirino




Antônio Flávio Pierucci era opinião obrigatória nos principais jornais sempre que as transformações religiosas no Brasil era o assunto tratado. Sociólogo respeitado, de notória inteligência, autor de vários livros, Pierucci teve nas religiões e no pensamento de Max Weber as principais inspirações de sua produção intelectual.

Eu não conseguia desassociar sua imagem da do grande sociólogo alemão. Logo que soube da morte de Pierucci, num ato talvez instintivo, corri para minha biblioteca e apanhei o exemplar de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” e a pasta com textos de Weber. Era o material utilizado nas aulas de curso ministrado no segundo semestre do longínquo ano de 1992: “Sociologia IV”, para a graduação em Ciências Sociais, na USP.

Comecei a folhear o material e encontrei uma prova. Quatro folhas manuscritas por mim, em tinta azul, ao longo das quais se encaixavam anotações do professor, em vermelho. Eis o estilo de Pierucci: não deixava comentários sem ponderações. Tinha um semblante compenetrado, sempre sério, mas não carrancudo, nem tampouco propenso a sorrisos fáceis. Inteligente, seu grande mérito para mim foi o de mostrar o quão instigante era seu objeto de estudo. Além disso, o de trabalhar o aluno de modo a mostrar suas falhas e necessidades de correção analítica, ao mesmo tempo em que destacava seus acertos, quiçá uma estratégia de, pelo ego, incentivá-lo a desenvolver o pensamento. Um bom exemplo disso é seu comentário final na tal prova:

João, há uma elaboração pessoal muito interessante em toda a extensão desta longa prova. Mas você deve ter cuidado para que neste movimento de se apropriar e elaborar em outros termos o pensamento de um autor, a clareza não se perca, nem se perca também a precisão dos conceitos produzidos pelo autor. Minha sensação é a de que você quase evita usar os mesmos termos do autor. Por quê? Se fosse para melhorar o resultado final, tudo bem, mas o efeito que você consegue não é este. O efeito é um “plus” de imprecisão e obscuridade, de um monte de “não entendi” da minha parte, que, modéstia à parte, entendo muito de Max Weber. Mas valeu, valeu, valeu. Há momentos brilhantes em tua prova. Um abraço.”

Além do intelectual renomado, lembro-me de Antônio Flávio Pierucci como um ótimo professor. Com sua calma e seu jeito de conciliar críticas, reparos e incentivos, demonstrava respeito por seus alunos e habilidade em transmitir-lhes o interesse pela obra de Max Weber.

Valeu, valeu, valeu, professor!

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Encantou-se

Vinicius Mota




Fica mais burro o Brasil com a morte repentina de Flávio Pierucci, sociólogo da USP, na sexta passada nesta capital. Citações a seu respeito tratam-no de "especialista em religiões". É pouco.
Nascido em Altinópolis (cidadezinha do norte paulista), Pierucci tornou-se um intérprete das idas e vindas do racionalismo ocidental na periferia do capitalismo. Seja na religião, seja nas preferências do eleitor, seja nos descaminhos da esquerda.

Nos últimos 20 anos, enveredou pela vasta obra de Max Weber (1864-1920). O mergulho nos legou a melhor edição brasileira de "A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo" (Companhia das Letras), texto crucial do sociólogo alemão.

Outro excelente produto desses anos de imersão é "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34). Com minúcia, Pierucci mostra como Weber enxergava na evolução milenar das religiões ocidentais -em contraste com grandes denominações do Oriente- o enraizamento da racionalidade na vida cotidiana.

Desde os profetas do judaísmo, a divindade veio sendo expulsa do mundo sensível. Os deuses não estão mais entre nós. Tornaram-se, nas configurações mais radicais do protestantismo cristão, uma ideia abstrata, insondável, intangível.

No lugar dos rituais mágicos e místicos para lidar com o divino, instalou-se um metódico regramento da conduta cotidiana -baseado no cálculo, na repressão dos prazeres e na valorização do trabalho e da riqueza. Daí porque, no Ocidente, a religião favoreceu e potencializou o racionalismo e o próprio capitalismo.

Filiado, como Weber, à vertente iluminista, Pierucci fez-se crítico das novas plataformas da esquerda, que valorizam identidades de etnia, gênero e "raça". O pressuposto de que há diferenças culturais irredutíveis entre grupos conflita, na prática, com a ideia de que o ser humano possui um acervo de direitos universais - estes, sim, inegociáveis.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 11/06/2012.