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quinta-feira, 31 de março de 2011

Antropologia não é ciência?

Márcio Ferrari
A Associação Americana de Antropologia (AAA) recentemente fez uma pequena alteração na redação de um de seus documentos principais. Embora pouco extensa, a mudança provocou uma grande repercussão, porque “ciência” foi a principal palavra retirada. Para o público leigo, o assunto chegou na forma de uma reportagem do New York Times, no dia 9 de dezembro, intitulada: “Antropologia é ciência? Declaração aprofunda um conflito”. A “declaração” referida é o plano de intenções de longo prazo da associação. Antes ele dizia que o objetivo da entidade era “promover o avanço da antropologia como a ciência que estuda a humanidade em todos os seus aspectos”. Agora diz que “os propósitos da associação devem ser a promoção do avanço do entendimento público da humanidade em todos os seus aspectos”. Em mais dois pontos do texto a palavra “ciência” foi removida. Ela subsiste, no entanto, em outros documentos importantes da AAA, como sua declaração de princípios.

Leia o artigo na íntegra, publicado na Revista Pesquisa Fapesp: 
http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=4374&bd=1&pg=1&lg=

Fetiches conceituais

Rafael Cariello


RESUMO
O sociólogo Luís de Gusmão preconiza o retorno das humanidades a um ensaísmo menos eivado de jargões, conceitos e categorias classificatórias, em favor de uma escrita mais livre, que dialogue com o senso comum, que privilegie a compreensão e que não ambicione o estabelecimento de leis científicas a seu ver duvidosas.



O jaleco: quando convidado a falar sobre sua formação intelectual, o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso volta e meia chama a atenção para esse detalhe significativo da vestimenta de alguns de seus professores e colegas no curso de graduação. O que lhe serve de mote para ilustrar as desmedidas ambições das humanidades em meados do século passado.
"A obsessão era fazer ciência", relata FHC em "Retrato de Grupo" (Cosac Naify), livro comemorativo dos 40 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). "Para que se tenha uma ideia de nossa dedicação a essa postura, andávamos de avental branco -como se fôssemos cientistas."
A imagem voltou a aparecer no discurso que ele proferiu em homenagem a Gilberto Freyre na Festa Literária Internacional de Paraty, em 2010. Era inevitável. Afinal, nos anos 50, o escritor pernambucano chegou a servir como contraexemplo para o método que os primeiros profissionais das ciências humanas no país, mestres do sociólogo tucano, pretendiam empregar.
Contra o que viam como vago "ensaísmo" bacharelesco das gerações anteriores, Florestan Fernandes e seus pares propunham um conhecimento social mais rigoroso em termos teóricos e metodológicos.
Cumpria recolher material empírico e compreendê-lo a partir de grandes sistemas conceituais, capazes de orientar a formulação correta das perguntas e das explicações daí decorrentes .
Marx, Durkheim e Weber ajudariam os cientistas sociais a reconhecer as "leis" de funcionamento das sociedades e da história -e delas derivar as conseqüências para um caso particular, como, digamos, o Brasil dos séculos 19 e 20.

AMBIÇÃO Há muitas pedras no caminho dessa ambição intelectual, como todos os seus praticantes puderam constatar desde então. Diferentemente das ciências naturais, que lhes servem de inspiração, as humanidades não dispõem de teorias únicas para os mesmos conjuntos de fenômenos, nem de métodos comuns a todos os seus praticantes. Ao contrário, distintos sistemas conceituais disputam a correta explicação de qualquer fato social, como bem sabem marxistas, weberianos, funcionalistas, estruturalistas etc.
Entretanto, ansiosas por validar seu status científico, todas as "escolas" sociológicas compartilham um desprezo por explicações sobre a psicologia humana ou fenômenos políticos e sociais particulares que não invoquem sistemas conceituais "científicos".
Assim, o conhecimento proporcionado pela análise de um historiador marxista seria mais amplo, teria maior valor, do que aquele oferecido por uma biografia desprovida de jargões técnicos ou sociológicos. A análise de um cientista político seria mais fecunda do que um comentário sobre o mesmo fato, ainda que extremamente arguto e inteligente, feito por algum marqueteiro ou por um mero jornalista.
Isso era verdade na década de 50, quando Florestan Fernandes orientava o jovem FHC em suas pesquisas sobre a escravidão, e ainda é verdade hoje. Desde então, os trajes em sala de aula mudaram. Mas um jaleco retórico e ideológico continua a caracterizar sociólogos, antropólogos e cientistas políticos, para prejuízo das disciplinas que praticam. É o que defende Luís de Gusmão, 54, doutor pela USP e professor do departamento de sociologia da UnB.
Em "O Fetichismo do Conceito", que deverá ser publicado pela TopBooks, depois de ter recebido indicação editorial do historiador Evaldo Cabral de Mello, Gusmão afirma que o uso de quadros conceituais não torna nenhuma análise sobre fenômenos sociais e políticos necessariamente mais fecunda.
Ao contrário. A busca por rigor "científico" nas humanidades, a tentativa de ultrapassar simples e inteligentes generalizações de senso comum sobre a sociedade, teria se revelado, na maioria das vezes, prejudicial à realização de explicações convincentes e esclarecedoras sobre fatos históricos, conflitos políticos, mudanças sociais.
Faltam a esses sistemas conceituais, nos diz o autor, leis sociológicas genuínas, distintas e irredutíveis às melhores generalizações do conhecimento de senso comum. As humanidades não foram capazes, afirma Gusmão, de descobrir leis e regularidades similares às alcançadas pelas ciências "duras".

PROBLEMAS Ao analisar determinado fenômeno, é comum que o esquema conceitual do pesquisador o leve a tomar seu "sistema" como mais real do que os fatos a serem explicados, distorcendo-os e subordinando-os à teoria.
A fidelidade a leis sociológicas inexistentes, segundo o autor, também pode suscitar a busca por explicações para objetos puramente "conceituais", inexistentes do ponto de vista de outros observadores.
"No limite", diz Gusmão, o "fetichismo do conceito", ou seja, a troca da pesquisa empírica por ilações dedutivas a partir de conteúdos conceituais pode nos levar a "substituir o socialmente real por fantasmagorias de realidade duvidosa".
O exemplo mais óbvio, mencionado pelo autor, é o da historiografia e sociologia apoiadas na teoria da história formulada por Marx.
"A aceitação da realidade de entidades como a 'consciência de classe revolucionária do proletariado moderno' ou a 'revolução burguesa no Brasil', longe de se impor a todos, depende completamente da adesão prévia a uma dada teoria social, no caso, o marxismo."
Críticas ao filósofo alemão são feitas hoje às baciadas. Mas costumam supor que outras explicações "teoricamente orientadas" sejam superiores ao materialismo dialético.

ABUSOS DEDUTIVOS A crítica do professor da UnB é mais ampla. Abusos dedutivos, que impõem esquemas gerais aos fatos particulares, deturpando-os, não são uma exclusividade do marxismo.
Não se trata, declara Gusmão, de negar a possibilidade de explicação de fenômenos sociais. O que ele faz, ao contrário, é tomar o partido do senso comum contra o "jaleco", num embate criado e mantido por grande número de cientistas sociais, inclusive por seus autores mais importantes, desde o século 19.
"As mais completas explicações da ação individual ou coletiva resultam essencialmente da descrição erudita, circunstanciada, de cenários sociais particulares e de esclarecimentos acerca dos valores, crenças e propósitos dos indivíduos que ali viveram e atuaram", ele diz. "Tais explicações são perfeitamente possíveis com base em conceitos sociais de senso comum."
O que o sociólogo afirma fazer, na verdade, é simplesmente constatar "a efetiva inexistência de leis sociológicas de validade geral que tenham sido empregadas, com sucesso, na explicação e predição de fenômenos sociais, leis cujas condições de aplicação tenham sido claramente estipuladas". "Eu não conheço nenhuma lei capaz de atender essas exigências", declara.

MUSEU Quanto mais amparadas em princípios dessa espécie, mais as obras sociológicas e historiográficas correm o risco de se tornar, ele diz, peças de museu, "exemplos de ambições arrogantes e fantasias infundadas, e não de realização intelectual", segundo a sentença de Isaiah Berlin. Em contraste, obras rigorosas sobre sociedades e períodos específicos, com forte apoio empírico mas imunes aos abusos teóricos, resistem ao tempo. Gusmão cita como exemplos as análises de Alexis de Tocqueville sobre a França e os EUA dos séculos 18 e 19, e de Joaquim Nabuco sobre o Brasil do final do Império e início da República.
Nessas obras, encontra-se saber análogo ao proporcionado pelas melhores obras literárias, que oferecem verdadeiros "insights" da psicologia humana, sem a necessidade de recurso a esquemas "científicos".

JARGÃO O autor de "O Fetichismo do Conceito" nos propõe então abandonar, simplesmente, todo e qualquer jargão técnico ou generalização explicativa que não possa ser traduzível em termos de conceitos e generalizações de senso comum, expressos na linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana. E usar essa capacidade de "tradução" como critério para separar o joio do trigo.
Trata-se de uma seleção, por um lado, bastante generosa, capaz de incluir entre os textos relevantes de história, política e sociologia muita coisa ainda desprezada pelos cientistas sociais, como biografias de fôlego, ensaios e livros jornalísticos. E, ao mesmo tempo, extremamente restritiva em relação às pilhas e pilhas de teses, artigos e livros produzidos todo ano pelas universidades e pelos especialistas. Pouca coisa sobrará.
O que parece, para Gusmão, inevitável. "No âmbito da investigação do socialmente real, em toda a sua concretude, a qualidade, o valor cognitivo do trabalho realizado, depende, em larguíssima proporção, de atributos intelectuais singulares, pessoais, do pesquisador, atributos esses que não podem, contudo, ser obtidos com base simplesmente numa formação profissional mais ou menos padronizada. Podemos dizer dos investigadores sociais mais notáveis aquilo que já dissemos dos filósofos, literatos e artistas de talento: infelizmente, não dispomos de fórmulas para produzi-los em série. O aprendizado teórico, os mais lúcidos bem o sabem, não muda tal situação." Nem o jaleco.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/03/2011.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Esnobando a USP

Suzana Singer

"Recebe-se com estranheza a notícia." Começava assim o editorial "Alerta na USP", publicado em 16 de março, que comentava a manchete da Folha de seis dias antes: um quarto dos estudantes aprovados na USP não se matricula.
É para estranhar mesmo. Quanta gente esquisita passa por uma prova duríssima e depois esnoba a melhor universidade do Brasil, mesmo sendo gratuita!
A reportagem da Folha trazia várias hipóteses para o fenômeno: aumento de vagas nas universidades federais, bolsas para alunos carentes estudarem em locais privados mais perto de onde moram, provas de avaliação unificadas.
Nada disso descartaria a possibilidade de a USP estar passando por uma fase de desprestígio. O editorial, mais explícito, dizia que há um "processo de acomodação e falta de criatividade" na universidade, que corre o "risco da estagnação".
No dia seguinte à manchete, a Fuvest soltou uma nota, afirmando que o percentual correto de desistentes é 16,3% e não 24%. A diferença está no número de estudantes convocados que não completaram o segundo grau (os "treineiros" que não se inscreveram nessa categoria) e nos aprovados que aguardam remanejamento para outros cursos na própria USP.
Caterina Lure Nema Paiva, 16, faz parte desses vestibulandos que confundiram as contas da Folha. Aluna do Colégio Bandeirantes, ela concorreu a uma vaga de Farmácia e Bioquímica para "ter a experiência". "Eu passei como treineira já no primeiro ano do ensino médio. Como treineiro, qualquer um passa", diz Caterina.
O engano foi discutido em uma reunião da Fuvest com os jornalistas da Folha e, depois de alguns vaivéns, o jornal publicou uma correção travestida de reportagem. Na quarta-feira passada, saiu em página interna de Cotidiano: ""Fuvest convocou 479 alunos sem ensino médio para a USP".
Embora reconhecesse que os ""treineiros desobedientes" inflaram os dados publicados, o tom não era de retificação, mas de denúncia contra a Fuvest, que chama para matrícula quem não deveria, e contra a pró-reitora de graduação, que analisou os dados a pedido da reportagem sem perceber que havia erro -na quinta-feira, Telma Zorn publicou um artigo em defesa da universidade em ""Tendências/ Debates".
Não deixa de ser expressivo que 16% dos aprovados na USP desistam de cursá-la. É um recorde -em 2005, eram 9,9%-, mas o número correto não seguraria uma manchete. O jornal escamoteou o "Erramos", em vez de seguir o "Manual de Redação": ""A Folha retifica, sem eufemismos, os erros que comete. A retificação deve ser publicada assim que a falha for constatada, mesmo que não haja pedido externo à Redação. As correções são feitas na seção "Erramos", ou, em casos de gravidade excepcional, na Primeira Página ou na capa de cadernos, aí também acompanhadas do título "Erramos'".
Para o leitor não importa que a incorreção não tenha sido culpa dos repórteres -neste caso, com os dados em mãos, eles os levaram a uma autoridade da universidade para analisá-los. O que interessa é que uma manchete estava errada, que a correção demorou a sair (13 dias é muito para um jornal diário) e não houve destaque suficiente para o novo dado.
Mas, se há responsabilidade da Redação, não deixa de ser curioso o comportamento da universidade. Diante de notícia tão bombástica, que gerou inclusive um artigo do professor José de Souza Martins no ""Estado de S. Paulo" (""Obrigado, mas preferi outra"), seria natural uma reação mais contundente.
A razão está, provavelmente, no passado. As relações da Folha com a USP não são fluidas desde a marcante ""lista dos improdutivos", a relação divulgada em 1988 com nomes de docentes que não teriam publicado nada em 1985-86.
A intelectualidade uspiana, que formava uma das bases do leitorado do jornal, sentiu-se traída, declarou guerra à Folha e, desde então, há uma desconfiança permanente entre as duas instituições.
Sempre que possível, a Folha fustiga a universidade, que se arrepia e se enrola antes de reagir. Seria saudável que esse relacionamento melhorasse -sem que o maior jornal do país tire o olho crítico da mais prestigiada universidade, que vive de dinheiro público.


* Suzana Singer é onbudsman da Folha.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/03/2011.