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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Eric Hobsbawn



O século de Hobsbawm

Vladimir Safatle


Morreu ontem Eric Hobsbawm, um dos mais influentes historiadores do século 20. Sua influência veio não apenas de um trabalho seguro e rigoroso de pesquisa historiográfica que privilegiava movimentos sociais dos séculos 19 e 20. Na verdade, em uma época como a nossa, que parece abraçar de maneira entusiasmada a crítica das chamadas "metanarrativas" com suas visões de processos globais e movimentos teleológicos, Hobsbawm destoava por ser um dos poucos que não se contentavam em afundar-se na micro-história.

Sem medo de procurar processos nos quais rupturas socioeconômicas e produção de novas ideias de cunho universalista se entrelaçam, Hobsbawm soube, como poucos, mostrar como a história da modernidade ocidental sempre foi a história das revoluções.

Fiel à filosofia da história de cunho hegeliano herdada pela tradição marxista, ele escreveu quatro livros clássicos ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios" e "Era dos Extremos") a fim de mostrar como as exigências igualitárias de liberdade enunciadas pelos setores populares da Revolução Francesa moldarão o curso da história como uma voz que sempre volta. Tal voz da igualdade será o fator de inquietude de uma história que será, cada vez mais, realmente mundial.

Adorno dizia que a fixação positivista nos "fatos" escondia, muitas vezes, a simples incapacidade de enxergar estruturas. Pensar é saber estabelecer relações e, se é inegável que certas construções da historiografia marxista demonstram-se infrutíferas e demasiado genéricas, há de se reconhecer que a rejeição em bloco dessa tradição teve forte impacto negativo na nossa capacidade de pensar a história.

Mas isso nunca impediu Hobsbawm de imergir nos detalhes e encontrar, por exemplo, na voz de Billie Holiday as marcas do sofrimento social dos esquecidos do sonho americano (conforme o livro "História Social do Jazz") ou nas desventuras do bandido Jesse James algo de fundamental a respeito dos descaminhos de nosso ideal de liberdade e das debilidades do poder (conforme o livro "Bandidos"). Hobsbawm sabia ler tais "fatos isolados" como sintomas sociais.

Alguns, como o historiador britânico Tony Judt, insistiam que Hobsbawm não teria capacidade de compreender as ilusões que moldaram o século 20, em especial o comunismo. Talvez seja o caso de dizer que a compreensão da história como simples crítica das ilusões corre o risco de perder de vista o essencial: de onde vem a força que faz com que indivíduos consigam ir além de seus próprios interesses imediatos? O que talvez explique porque quis o destino que o último livro de Hobsbawm se chamasse exatamente "Como Mudar o Mundo".

Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/10/2012.

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Hobsbawm expandiu limites do pensamento marxista

Jorge Grespan



Eric Hobsbawm conquistou justo prestígio entre o grande público apreciador da história e também entre seus colegas de ofício, o que já é em si algo digno de nota.

Claro e elegante, abordou temas aparentemente tão distintos como o mundo do trabalho e o jazz, sempre preocupando-se em relacionar as várias esferas da vida social e fugir de explicações unilaterais, pintando quadros históricos largos, mas precisos.

Incluindo-se na geração de historiadores do pós-Guerra que chamava de "modernizadores", dedicou-se inicialmente à história do século 19, e o sucesso alcançado por seu "A Era das Revoluções" levou-o a escrever "A Era do Capital" e "A Era dos Impérios".

Não os escreveu para os colegas, mas tornou-se referência também para eles, carentes de obras que rompessem limites entre temas particulares e situações nacionais.

Teve nesse ponto importância decisiva, ao criticar a historiografia acadêmica tanto por sua especialização excessiva quanto pelos preconceitos que a impedem de se dirigir a um público leigo.

Hobsbawm chegava a se apresentar como "vulgarizador". Mas não nos enganemos: atingir um público amplo significava não satisfazer a curiosidade acrítica do mercado editorial, e sim participar de um esforço formador.

Em grau e forma própria, compartilhava com colegas como Christopher Hill e E. P. Thompson de uma atitude crítica em relação ao que se consideraria próprio a um historiador marxista e, por isso, inovou nos temas e métodos, como ao escrever sobre uma de suas paixões, o jazz.

Aqui, como na obra sobre "A Invenção das Tradições", o interesse é iconoclasta. Trata-se de solapar entidades caras ao neoconservadorismo militante a partir dos anos 1970, descobrindo o lado mistificador de certos apelos ao passado legitimador.

Mais do que expressão do inconformismo racial nos EUA, o jazz é entendido no contexto da história da indústria, em especial a cultural. E tradições importantes da monarquia inglesa são examinadas e diferenciadas dos "costumes" em que se baseia o direito consuetudinário típico da ilha, para evidenciar que nelas o passado aparece como algo justificador da resistência a mudanças perigosas para os poderes constituídos.

Mostra assim aos críticos que o marxismo não precisa ser economicista. Mas o mostra também aos marxistas. Esses são seus grandes legados.

Como seria inevitável, há quem discorde de teses expostas na sua vasta obra. Mas não quem negue que ele foi um dos maiores historiadores marxistas de nossa era, cujos "extremos" parece que só começaram depois de 1991.


JORGE GRESPAN é professor do Departamento de História da USP e autor de "O Negativo do Capital" (Expressão Popular)
Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/10/2012.

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